Na madrugada de 09 de junho, de 2007 o telefone da professora aposentada Regina Célia da Costa Jardim tocou. No outro lado da linha era um amigo da família, preocupado com o estado de saúde da sua filha Priscila Regina Jardim, 29 anos. Após aquela ligação soube que perdera a sua filha para sempre, por alguém que um dia disse amá-la.
A vítima já havia terminado o namoro de três meses com Alexandre Bittencourt Oliveira e Souza, 27 anos, porém, ninguém imaginava que naquela noite, ele entraria armado na Boate Tulha, localizada na cidade de Cruzeiro do Vale do Paraíba (SP), para assassinar Priscila.
“Ficamos sem chão! A Polícia não nos procurou para avisar. A notícia veio através de uma ligação, foi como receber um soco no estômago. Fui até o hospital, na esperança que estivesse apenas ferida, mas a encontrei no Instituto Médico Legal (IML), atingida com quatro tiros, sendo um no estômago e três na cabeça”, conta a professora.
De acordo com a Agência Patrícia Galvão, responsável pelo Dossiê Violência Contra as Mulheres, "o feminicídio é a última instância de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante”.
Julgado, o assassino foi condenado a 13 anos, e após recurso da família da vítima, a pena alterada para 19 anos. Mesmo após a condenação do feminicida, Regina não queria que esses crimes continuassem invisíveis para a sociedade, e em 2007 criou a comunidade no Orkut ‘Quem Ama Liberta’, onde postava matérias sobre feminicídio. Em 2012 migrou para o Facebook, e atualmente possui 9.365 seguidores.
“Quando resolvi fazer a comunidade fiz uma ‘listinha’ de mulheres assassinadas por feminicídio. Elas morreram pela sua liberdade, por dizer não a um relacionamento abusivo. Acredito que quem realmente ama deixa o outro viver da maneira que quiser e com quem quiser, por isso intitulei ‘Quem Ama Liberta’,” declara a professora.
A fundadora da página possui uma rotina de trabalho para manter a comunidade sempre atualizada. Diariamente é feita uma busca na internet usando no mínimo três tags: companheiro, marido e namorado. Durante essas pesquisas notou que havia vários casos, que não eram divulgados na ‘grande mídia’.
“Eu fiquei perplexa ao ver o número de vítimas que não chegavam a grande mídia, principalmente as de origem mais humilde, sendo divulgado apenas em blogs locais. É necessário dar visibilidade aos crimes de feminicídio,aàs pessoas têm que entender a gravidade do problema. Da mesma forma que não quero ver minha filha esquecida, também não quero que as outras mulheres sejam”, conta a criadora da página.
Em 2016 entrou em vigor a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340). De acordo com a legislação violência doméstica é o ato contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
De acordo com a professora aposentada o seu projeto vai além de compartilhar notícias, funciona como uma rede virtual de apoio a mulheres, que estão sofrendo algum tipo de violência doméstica. Em muitos casos esse amparo previne um futuro crime de feminicídio.
“É impressionante o número de mulheres que precisam conversar. Primeiro elas começam cumprimentando devagarinho, e depois vão se abrindo, contanto os abusos, o medo de deixar o relacionamento, ou a vitória de ter conseguido sair. Já fiz muitas denúncias no 180 a pedido das mesmas, por medo de denunciar. O meu conhecimento sobre o assunto é empírico, portanto, a minha tarefa é ouvi-las e no máximo sugerir que procurem ajuda nos órgãos especializados. É impressionante perceber como as pessoas ‘fogem’ deste assunto, muitas vezes postar um caso de feminicídio na página já gera polêmica. Pergunto se têm algum psicólogo, sociólogo, advogado, ou assistente social para ajudar na mediação, mas ninguém se manifesta,” declara a professora.
A implantação da lei Maria da Penha ocorreu um ano antes do assassinato de Priscila, mas, não impediu o aumento no número de homicídios contra as mulheres no Brasil. A taxa chegou a cair em 2007, mas voltou a subir em 2008 e, em 2013, já era 12,5% maior do que em 2006.
Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2018, o aumento de feminicídio foi de 34% em relação a 2016, passando de 3.339 casos para 4.461. Também houve crescimento no número de processos pendentes relativos à violência contra a mulher. Em 2016, havia quase 892 mil ações aguardando decisão da Justiça. Dois anos depois, esse número cresceu 13%, superando a marca de um milhão de casos.
Em 12 anos de militância digital ‘Quem Ama Liberta’ foi tema de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), como o documentário As damas de preto: mulheres em luta, o livro É preciso falar das flores: histórias de vítimas do feminicidio, o crime de ódio contra mulheres. E futuramente será tema de outro livro.
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