Um monstro de duas cabeças, azul e faminto, está pronto para atacar, quando surge de um lugar escuro e distante um ventilador corajoso, pronto para defender os peixinhos da lagoa. "Não coma meus amiguinhos porque eu sou poderoso".
No calor da imaginação, o prato de sucrilhos cai no chão, esparramando todo leite. Júlia se apressa em contar o acontecimento, com ares de que foi um acidente terrível.
Hora do banho. A pequena menina encena o dramalhão: Meu dedo está doendo, capítulo 255. Mais parecida com o personagem Cascão, da Turma da Mônica, a pele da Júlia reage à primeira gota de água.
Aos desavisados, cuidado, ela também já desenvolveu uma dor repentina e aguda nos dentes, na perna, nas unhas do pé, no ouvido e até nas raízes dos cabelos, que não suportam o peso da escova. Tente oferecer chocolate que os efeitos serão imediatos e altamente benéficos: - "Ai, acho que passou, mamãe".
“Estar no papel de mãe geralmente exige bom humor e disposição para mergulhar junto no mundo da fantasia e deixar a vida ser um grande palco de atuação, onde não existe lugar para tristeza ou cansaço”
Os passos são lentos e o olhar perdido na imensidão do mundo e do espaço. A cada metro da calçada um tropeção. Na cabeça mais fácil seria usar um capacete. Distraída, ela geralmente se perde entre as prateleiras do supermercado em apenas dois segundos. Ouço de longe a atendente:
-"Senhora Rosimeire, sua filha Júlia a aguarda no DAC". Sem apresentar desespero, ela aguarda sentadinha na cadeira, no meio daquele tanto de gente, de maneira angelical, olhos arregalados, tentando avistar a mamãe.
A comida esfria no prato, porque os sonhos parecem alimentá-la. A cabeça permanece a mil por hora. De repente, mais uma ideia mirabolante.
Vestida com uma blusa vermelha de frio, ela faz de conta que está no planeta Xis, um lugar frio, em que existem criaturas estranhas, verdes com bolas azuis, três olhos...Impossível não achar engraçado!
Estar no papel de mãe geralmente exige bom humor e disposição para mergulhar junto no mundo da fantasia e deixar a vida ser um grande palco de atuação, onde não existe lugar para tristeza ou cansaço.
Brincar, brincar e brincar. Júlia parece estar ligada numa tomada, até que os "faróis" começam a ficar baixos, sinal de que o sono chegou. Pronto, ela dorme feito anjo, nem parece a menina serelepe de poucos minutos atrás.
As aventuras lúdicas são necessárias para o crescimento saudável, por isso mães, deixem seus filhos sonharem. A preocupação pelas desgraças do mundo é uma carga pesada demais na infância. Apesar de estarem inseridas numa realidade difícil, é importante protegê-las inicialmente.
Escrevi esse texto há 16 anos, enquanto repórter do jornal A Gazeta, na época a Júlia tinha apenas 4 anos. Desde então foram anos muito bem vividos, com a transição adequada entre todas as fases, saindo da infância, entrando na adolescência, e por fim, na adulta.
Júlia teve seu primeiro emprego, depois o segundo e se frustrou em duas provas do Enem até alcançar uma vaga - por meio de uma bolsa de estudos - em uma faculdade em Brasília. Fez viagens, foi protagonista no teatro e fortaleceu seus laços de amizade.
A menininha cresceu e hoje mora longe dos pais, precisa lavar a própria roupa, administrar a limpeza do quarto, do tempo e dinheiro. Também lida com emoções complexas como saudade, solidão e medo sem ter a família por perto, ou seja, precisa proteger a si mesma.
Mesmo que os filhos tenham crescido e sejam adultos sigo com o mesmo mantra: "deixá-los sonhar". Eles precisam sim entender que o mundo lá fora não é fácil, mas não posso impedir que tenham suas próprias experiências e, deste modo, aprendam com seus próprios erros e acertos a serem seres humanos melhores.
Rose Domingues é jornalista, escritora no RD Comunicação e escreve exclusivamente nesta coluna às segundas-feiras. E-mail: rose.rdcomunicacao@gmail.com