O passado veio à tona assim que os olhos de seu Antônio encontraram o Fordinho 1929, dirigido por ele da infância à juventude, como taxista em Cáceres, cidade que pertencia a nós quando o Estado era um só. De surpresa, o neto, fotógrafo, Nícolas Carrelo, trouxe um Chevrolet idêntico ao antigo veículo do avô, para um ensaio. A ideia era fotografar Antônio ao lado de dois grandes amores: Nilce, com quem é casado há 58 anos completos hoje, e o carro. O resultado? Um amor em lágrimas e uma volta ao passado sem sair da antiga estação ferroviária.
Antônio de Moraes Carrelo tem 86 anos, uma história linda de vida e uma memória incrível. Consegue narrar com a perfeição de detalhes que deixam qualquer jovem que ouve boquiaberto. Sabe os minutos que se passaram dentro do Fordinho 29, aquele que o transformou em taxista da frota do próprio pai, aos 13 anos de idade.
"Trabalhei muitos e muitos anos como taxista, até que apareceu um concurso no Estado. Eu tive só quatro anos na escola, fui empregado do comércio e lá que aprendi muita coisa. Me aposentei na Secretaria de Fazenda do Estado, então Mato Grosso como agente tributário estadual", este é um breve resumo da vida que se passou diante dos olhos do atento motorista a levar passageiros.
De brincadeira, ele começou no táxi como guri. O primeiro passageiro que o transformou em um. Era o cônsul da Bolívia que bateu à casa da família pioneira em táxi na cidade de Cáceres, pedindo uma corrida até o aeroporto. "Até parece brincadeira, meu pai não estava e minha mãe respondeu que o único em casa era eu, de menor, mas que sabia dirigir e lá fui eu. Comecei a trabalhar e não larguei mais, conta.
Seu Antônio diz que não tem estudo, mas "tem conhecimento de tudo o que aconteceu na vida". Entrou no Fordinho 29 como motorista em 1942. A primeira foto que tem dele é um tempo depois, com 20 anos, ao lado dos irmãos, exibindo toda frota da família.
Foram anos felizes atrás do Fordinho. Como eu sei? Pelas palavras e o choro que brota em seu Antônio quando ele chega na parte em que a família perdeu tudo, inclusive o pai e teve de vender os carros. Até o Fordinho. Entre 1951 e 1952, houve concorrência para o táxi na cidade e eles perderam boa parte do serviço, inclusive as corridas do aeroporto. Ficaram a ver navios.
"Um dia esse senhor, desses concorrentes, parou em frente da nossa casa e deu uma buzinada forte. Meu pai assustou, quando viu que era o cara que transtornou a vida dele, teve um derrame". A narração é interrompida pela dor da saudade. Foram dois anos de internação e tratamento médico que terminou na morte do pai. Para pagar dívidas de médico e hospital, tudo foi vendido, inclusive o Fordinho 29.
No mesmo ano, seu Antônio se casou com Nilce, a filha do "Bexiga" como era conhecido na região, depois de três anos de namoro e noivado e muitas serenatas. Ele seguiu a vida como taxista até o final da década de 80, o quanto pode conciliar com o concurso público na Secretaria.
Os anos passaram e o carro, ficou na memória até Antônio se deparar com ele circulando na cidade. Armação do neto, quando o avô aceitou o convite para fazer o ensaio com a esposa, não sabia o que o coração lembraria. No trânsito, ele chegou a ver o carro antes de chegar à estação ferroviária. Como era surpresa para ele, a família tentou disfarçar. Ele de cara reconheceu e pediu que fizessem fotos para ele guardar. Mal sabia que ele mesmo as tiraria minutos depois.
Nícolas, o autor da foto e das surpresas, combinou tudo com a avó. "Era uma surpresa que há muito tempo eu vinha pedindo para ela, para fazermos umas fotos. Combinei com um amigo meu, dono da Vintage, de carros antigos, disse que precisava de um Ford 29, ele falou que tinha um Chevrolet cabeça de cavalo, igualzinho", conta Nícolas sobre os bastidores.
Coincidência ou não, o carro que foi cenário do ensaio também era táxi, o primeiro da Estação da Luz de São Paulo. "No caminho, quando ele viu, já se encantou"... e o avô interrompe "me emocionei, sabe? Eu sou muito fraco para isso, quando desci do carro, de repente aparece o Fordinho, não é possível..."
As lágrimas escorreram pelo rosto de Antônio, Nilce, Nícolas e todos da família que acompanhavam a surpresa. "Lembrei do passado, minha infância foi dura, passamos por vários pedaços", se explica. Nilce, a esposa, narra em detalhes o diálogo que se travou ali: entre Antônio e o Fordinho.
"Ele deu com o carro e começou a contar a vida toda... Olha, aqui eu machuquei o queixo quando fui dar partida, aconteceu isso com a minha mãe..." reproduz Nilce de Souza Bexiga Carrelo, de 78 anos.
O passado trouxe saudade que também se expressou em sorrisos. Antônio parecia criança de novo. Talvez com a alegria de guri, a mesma com que dirigiu pela primeira vez o táxi, carregando o cônsul.
"A emoção do meu avô foi indescritível. Perguntei quando foi a última vez que ele andou e ele disse que audno o pai faleceu e precisou vender. O último contato que meu avô teve com ele foi assim... Eu pedi ao motorista da Vintage que realizasse então um sonho do meu avô e meu, que o levasse de carona de volta ao galpão da empresa e ele levou meu avô de passageiro. Precisava ver a cara dele..."
A gente pode imaginar só de ver as fotos. O ensaio ficou perfeito. Mostra a alegria de um passado sofrido, mas bem vivido atrás do volante do Fordinho 29.
Essa é uma sugestão de pauta do fotógrafo do Campo Grande News, Marcos Ermínio.