“O falar cacerense é um patrimônio cultural que precisa ser preservado”. A afirmação é da professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) Jocineide Macedo Karim, doutora em linguística e uma estudiosa do falar cacerense. Para ela o “djeito” de falar dos cacerenses é de uma riqueza inesgotável e que merece ser preservada para que não seja vítima de preconceito.
O falar cacerense, de acordo com a pesquisadora, está totalmente baseado no período de formação do Brasil Colônia, por volta de 1750, quando Cáceres foi colonizada por bandeirantes que vieram de São Paulo e por portugueses que vieram do norte de Portugal. “A nossa fala está muito atrelada aos usos linguísticos daquele tempo. Nós temos aqui no nosso falar o português padrão, o português popular, o português arcaico e temos usos linguísticos que vieram com os portugueses colonizadores do norte de Portugal”, explica. Para ela, os estudos mostram que Mato Grosso formado durante o período do Brasil Colônia tem traços linguísticos muito parecidos, já o Mato Grosso formado depois do período do Brasil Colônia é outro.
Para a professora, a manutenção dessa forma de falar, que é uma expressão cultural e de identidade do povo cacerense, se deve por conta do relativo isolamento que Cáceres sofreu, sem ter tido contado por muitos anos com pessoas vindas de outras localidades. “No tempo antigo só quem podia sair de Cáceres eram as pessoas que tinham posses e os demais ficam aqui, por conta disso os usos linguísticos permaneceram”, explica. Com o aumento do fluxo de pessoas de outras regiões a partir do asfalto, da construção da ponte Marechal Rondon, iniciou uma leva de migrantes o que ocasionou uma mistura, mas o falar se mantém.
O que mais impressiona os que vem de fora, são os usos linguísticos como o “djá”, o “djé”, o “tché” que estão presentes no “petche”, “catchorro”, “dgente”, “atchei”, “djeito”, e essa forma é um uso linguístico muito presente, ainda nos dias de hoje no norte de Portugal. Além disso, é comum na fala dos cacerenses o rotacismo que é´a troca do “L” pelo “R”, como em “bicicreta”, “probrema” “Cróvis”, “craro”. “Esse fenômeno aparece muito comumente em Cáceres e ocorre em diferentes níveis sociais e de escolaridade. Além disso, esse uso foi padrão no tempo de Camões. Lendo Camões vamos encontrar lá - frecha, fror -, e esse uso se manteve em Cáceres por conta do isolamento e isso vem sendo passado de pai para filho e a língua de casa permanece”, explica.
Para a professora Jocineide é preciso deixar claro que o preconceito com relação ao falar cacerense é muito atrelado ao preconceito social, econômico, mas ainda assim essa realidade vem sendo modificada, porque a medida que aumentam os estudos e as pessoas tem mais conhecimento de que na fala não ocorrem erros, mas usos linguísticos, vai se tendo a consciência de que o falar cacerense é um patrimônio cultural que precisa e merece ser respeitado e preservado. Ela lembra que a escola tem a obrigação de ensinar o padrão formal, principalmente na escrita. “Claro que as pessoas vão estudando e dependendo do local em que estão, vão adequando seu modo de falar conforme o local. Ninguém vai à praia de terno, ou ao fórum de biquíni, mas quando se está em família, em momentos de descontração esses usos são mais frequentes”, diz.
No falar cacerense ainda podemos encontrar outros fenômenos típicos como o uso do “tchâ” e do “tchô” em vez de sua e seu, como por exemplo, em “você vai na tchá fazenda hodje?”, ou ainda essas mesmas expressões funcionando como os pronomes possessivos, como por exemplo em: “vô sim... vô trazê tchôs porco e tchás galinhas”. O “tchá”, também pode ser o “chá”, como em “Tchá cô bolo”, ou mesmo utilizado para substituir senhor e senhora como em: “a tchá Maria e o tchô Djoão”. A professora explica, o “tchô” também pode ser utilizado como “Xô”, em Cáceres tem exemplo de loja de material de pesca que o nome faz menção a loja do senhor como em “Xô Nei”, que não é sinônimo de apaixonei, mas uma variação que de senhor, senhora, “sinhor”, “sinhorzinho”, “nhor”, “seu”, “nhô”, até chegar ao “xô”.
Outro traço muito marcante no falar em Cáceres é a questão de concordância nominal de gênero, como “vou no mamãe”, ou como “nossa infância era maravilhoso”. Também temos a questão do “on”, como pão que se fala “pón” “mamón” e que também está presente em Portugal. “As pesquisas mostram que esses usos de trocar os genêros ocorreriam em Portugal por volta de 1740 e que além daqui de Cáceres, onde ainda permanece, também pode ser encontrado em outras regiões do Brasil, principalmente onde as bandeiras para colonização e exploração passaram no Brasil, como interior do Paraná, interior de São Paulo”, explica.
Para a professora o primordial é saber que a língua é dinâmica e que a medida em que ela é usada vai ocorrendo sua renovação. Para ela, muitos usos podem desaparecer ao longo do tempo, porque os mais antigos que ainda preservam podem vir a morrer e os mais jovens vão sofrendo outras influências. “Mas o que a gente percebe é que a direção atual é de valorizar e de preservar. O que ocorre com relação ao preconceito é que o nosso povo é um povo simples, acolhedor. Não é um povo de embate, então quando ele sofre algum preconceito ele fica quieto, e hoje a gente não vê tanto preconceito em outras regiões que tem traços e usos linguísticos marcados como no Rio de Janeiro ou no Sul, por exemplo. O preconceito é social: o valor da fala dele é o valor que ele tem na sociedade. Então se somos uma sociedade, para os grandes centros, o interior do interior, então se forma o preconceito. Mas isso tem mudado por conta do conhecimento que vem sendo disseminado, de que o falar cacerense é uma riqueza, um patrimônio”, afirma.