Em pouco mais de duas décadas no Brasil cerca de 50 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas a de pessoas escravizadas, segundo dados do Ministério do Trabalho de 1995 a 2016. Em Mato Grosso, foram mais de 4 mil pessoas resgatadas no período. O debate sobre essa realidade com foco nas perspectivas e desafios para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no país marcou na última sexta-feira (25.10), em Cáceres – MT, a agenda de palestras e de exibição do documentário “Mãos a Carne: como a escravidão contemporânea contamina a pecuária brasileira”.
Realizada no auditório do Instituto Federal de Mato Grosso, IFMT Campus Cáceres - Prof. Olegário Baldo, a agenda reuniu mais de 230 participantes e contou com as contribuições da professora da graduação e do mestrado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso, Carla Reita Faria Leal, juíza do Trabalho aposentada e da pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ( PUC-RJ) Heloisa Gama, autora do estudo que gerou o documentário.
“A ideia é trazer a discussão para o maior número de pessoas para realmente fortalecer o combate a esta chaga e erradicar o trabalho escravo no Brasil”, afirma Carla Reita, coordenadora – geral do evento.
A atividade foi promovida pelo Projeto Ação Integrada (PAI) criado em 2009 pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) em conjunto com a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região, e Organização Internacional do Trabalho (OIT) com o proposito de prevenir a incidência e reincidência de situações análogas ao trabalho escravo.
Em Cáceres, o evento foi realizado por meio da articulação entre o Grupo de Pesquisa da UFMT “Meio Ambiente do Trabalho Equilibrado como componente do Trabalho Decente”; o Centro de Referência em Direitos Humanos – Profa. Lúcia Gonçalves da Universidade do Estado de Mato Grosso e o IFMT Campus Cáceres por meio do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e Trabalho.
A mesa de abertura contou com a participação das palestrantes e das coordenadoras local professora Edir Antonia de Almeida, do CRDH – Unemat e professora Iris Gomes Viana do IFMT, além da presença da diretora de Direitos Humanos da Pró-reitoria de Extensão da Unemat, Cintya Leocádio Dias Cunha. Entre as pessoas participantes, representantes de movimentos e organizações sociais, do setor produtivo da agropecuária, profissionais das áreas do Direito e da Educação, docentes e estudantes da Unemat e do IFMT.
Na abordagem sobre o “trabalho escravo contemporâneo no Brasil”, Carla Leal, doutora e mestre em Direito das Relações Sociais e Direito do Trabalho, apresentou uma análise sobre como se configura a escravidão no Brasil na atualidade com ênfase em embasamentos legais e jurídicos a partir do Código Penal brasileiro. Ela destaca que o bem jurídico protegido não se limita a liberdade, mas é a dignidade do trabalhador.
Com relação aos modos de execução do crime, a professora destacou além do trabalho forçado, a jornada exaustiva que desrespeita de forma geral e sistêmica os limites das jornadas estabelecidas em lei e o descanso intrajornada do trabalhador e que cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas da pessoa do trabalhador, com riscos à saúde e segurança. Entre outros elementos apontados para a caracterização do trabalho escravo contemporâneo estão a servidão por dívida e as condições degradantes que são submetidos os trabalhadores a exemplo de alojamentos precários, falta de água e sanitários, alimentação inadequada ou insuficiente, salários atrasados ou retidos, maus tratos e violência.
Como instrumentos para o combate ao trabalho escravo contemporâneo, a pesquisadora elencou o papel da comissão nacional e das comissões estaduais para a erradicação do trabalho escravo (Conatrae e Coetraes), a divulgação da Lista Suja do trabalho escravo com o cadastrado dos empregadores que exploram trabalho em situação análoga à de escravidão, bem como a atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério Público Federal (MPF) e do grupo móvel de fiscalização.
Outra ferramenta apontada é o observatório digital do Trabalho Escravo do MPT e Organização Internacional do Trabalho, OIT que apresenta entre outras informações, a distribuição geográfica dos casos e o perfil das vítimas resgatadas. O perfil permite identificar além dos riscos específicos existentes em determinadas atividades econômicas e cadeias produtivas, vulnerabilidades relacionadas a padrões sociodemográficos e identitários.
De acordo com Leal, no que tange às perspectivas para o combate ao trabalho escravo no contexto atual o cenário é de dúvidas. Em meio às perspectivas negativas elencadas estão “tentativas de alterar no plano legislativo o conceito de trabalho escravo; fim do Ministério do Trabalho; tentativas de deixar publicizar a lista suja, e enfraquecimento da fiscalização por parte do Ministério da Economia através de corte de verbas e não reposição de fiscais, resultando em queda no número de fiscalizações”.
No universo das possibilidades, como perspectivas positivas a pesquisadora elenca “a especialização dos agentes públicos encarregados do combate; melhoria na correta identificação do que é o trabalho escravo pelos atores envolvidos, em especial pelo Poder Judiciário; o envolvimento da sociedade civil no combate ao trabalho escravo, aí incluídas as universidades; criação do Observatório Digital do Trabalho Escravo MPT/OIT; e a responsabilização da cadeia produtiva”.
Mãos à carne
Com a abordagem na palestra “o trabalho escravo nas cadeias globais de produção”, a pesquisadora da PUC –RJ Heloisa Gama, apresentou o estudo sobre Trabalho Escravo na Cadeia de Produção da Pecuária a partir de pesquisa desenvolvida em parceria com a Universidade Inglesa University of Nottinghan que resultou na publicação do artigo “Erradicando trabalho escravo em cadeias de produção: lições na exportação da carne e madeira Brasil-Reino Unido”.
A pesquisadora que é graduada em relações internacionais, mestre em análise e gestão de políticas internacionais com área de estudo em tráfico de pessoas, trabalho escravo e cadeias globais de produção destaca que as formas contemporâneas de trabalhos escravo em cadeias globais são impulsionadas pela maior competitividade, maior pressão por redução dos custos e mais contratos terceirizados.
No contexto brasileiro em que a Pecuária é o setor que mais produz com mão de obra escrava, de acordo com dados oficiais do Ministério da Economia, com o percentual mais elevado de trabalhadores resgatados em situações análogas a de escravo na atividade da pecuária (31%), a pesquisadora apresentou o modelo de cadeia de produção da pecuária que tem inicio nos insumos relacionados à indústria de defensivos, alimentação animal, genética animal, passa pela fazenda em toda a relação da produção animal, pelos frigoríficos em meio a intensas relações comerciais e de desdobramentos da cadeia produtiva e subcontratações para realizar o processo de produção até a carne chegar à mesa do consumidor.
Após a palestra, Heloisa apresentou o documentário “Mãos a Carne: como a escravidão contemporânea contamina a pecuária brasileira” que é desdobramento da pesquisa realizada em conjunto com a professora Silvia Pinheiro. O filme visa possibilitar maior compartilhamento do conhecimento e o despertar para a consciência em torno da conjuntura da escravidão moderna no Brasil e do trabalho das instituições que atuam em políticas de erradicação do trabalho escravo no país.