O ciclo de violência doméstica começa com atitudes que configuram baixo risco de morte, como discussões, ciúmes, proibições aparentemente banais, evoluindo para xingamentos, humilhações e atos isolados de agressões físicas. Nesta fase, as vítimas dificilmente denunciam ou procuram ajuda, por uma série de motivos, mas principalmente, porque acreditam que o companheiro pode mudar.
O relacionamento da estudante Cali (nome fictício para resguardar a identidade da vítima) sempre foi conturbado, com muitas discussões, términos e reconciliações, ao longo de dois anos. Tendo apenas 16 anos de idade, ela sofreu a violência de quem não aceita o fim, caracterizando o sentimento de posse masculino. “Ele pegou o celular, jogou no chão e quebrou. Depois, começou a me bater e ameaçar, disse que se não ficasse com ele não ficaria com mais ninguém, que ia me matar nem que tivesse que se matar depois”.
Essa foi a reação do então companheiro quando ela disse que iria morar com a mãe, junto com o filho do casal. A mãe dela, então, foi conversar com ele, momento em que o agressor atirou contra Cali e acertou a perna esquerda da vítima. Após o fato, ele mandou mensagens no celular da vítima, dizendo que a amava. Com medo, no ato de registro da tentativa de homicídio, ela pediu medidas protetivas.
A história da jovem faz parte de um dos inquéritos civis analisados detalhadamente na dissertação de mestrado da escrivã da Polícia Civil de Mato Grosso e jornalista, Luciene Oliveira, com o tema “O feminicídio no processo da violência é evitável? Políticas de proteção às mulheres em situação de violência”. Foram considerados casos registrados na Delegacia da Mulher, Criança e Idoso de Várzea Grande, nos anos de 2016 e 2017.
Primeiramente, foram selecionados 17 inquéritos, dos quais foram mantidos 13 para a análise detalhada. Porém, o perfil das vítimas foi traçado levando em conta o total inicial. A pesquisa detectou que a maioria são mulheres jovens e adultas (35% têm entre 36 e 45 anos e 35% têm 18 a 25 anos), com baixa escolaridade (apenas seis possuíam essa informação, prevalecendo Ensinos Fundamental e Médio, incompletos ou completos), que moram em bairro periféricos.
Dependência financeira
A maioria define sua ocupação profissional como “do lar” (35%), ou seja, mulheres que cuidam do trabalho doméstico em tempo integral e não remunerado. As estudantes vêm sem seguida, com 23%. As que trabalham fora estão em empregos pouco remunerados: serviços gerais (12%), e jornalista, manicure, pensionista, vendedora e sem informar (6% cada).
A estudante Mendoza (nome fictício para resguardar a identidade da vítima) tinha 18 anos de idade quando começou a sofrer ameaças e violência psicológica durante o período de um ano que morou com o denunciado, no interior do estado. “Ele me impedia de ter contato com a família, depois passou a me agredir e quando eu dizia que ia me separar ele ameaçava matar meus familiares, e comentava com amigos que se me visse com outro homem me mataria”.
Ele passou a persegui-la, enviando mensagens telefônicas e a vítima declarou tê-lo visto passando de motocicleta em todos os lugares que ia. Numa dessas ocasiões, Mendoza estava com amigos, na frente da casa da mãe, quando perceberam que o ex-convivente estava em um terreno baldio do outro lado da rua. Em seguida, acharam melhor entrar em casa, quando ele fez dois disparos de arma de fogo. Ninguém se feriu, mas as perseguições continuaram. Com medo, ela mudou o número de celular e também de cidade.
Tanto ela quanto Cali tiveram coragem para denunciar e buscar o fim do ciclo de violência, reconhecendo o risco que corriam. Infelizmente, elas fazem parte de uma minoria. Entre as atitudes tomadas, 52% não fizeram nada e apenas 10,03% procuraram a Delegacia da Mulher. Entre as demais, 8% disseram que foram até uma delegacia comum; 5,5% acionaram o Disque 190; e 15% procuraram ajuda na família. Os dados são da pesquisa vitimização do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2019.
Escalada da violência
A residência foi o local do fato mais preponderante (76%) identificado na dissertação, com 13 casos, e a via pública teve menor incidência (24%), presente em quatro inquéritos. É importante ressaltar que 12 mulheres (71%) se sentiram ameaçadas de morte e pediram medidas protetivas; outras cinco (29%) entenderam não ser necessário e recusaram as garantias previstas na Lei Maria da Penha (11.340/2006).
Essa relutância, por medo ou pela idealização do amor, leva as mulheres ao grau de alto risco do ciclo de violência. Conforme a linha de entendimento adotada na dissertação, é a chamada escalada da violência, “que segue o rito do menor grau ao maior nível, decorrente do desequilíbrio masculino que se intensifica com o tempo na relação”. Os vínculos afetivos das mulheres analisadas com os agressores são todos acima de um ano, chegando a 10, 20 e 26 anos de relacionamentos.
O longo tempo de convivência torna o processo mais difícil, principalmente, quando há filhos nascidos da união conjugal. Quase todas as vítimas dos inquéritos analisados têm filhos menores de idade, exigindo delas cuidados dobrados na alimentação, higiene e educação, assumindo o papel de provedoras do lar. Várias mulheres deixaram claro nos depoimentos os complicadores financeiros e assistenciais.
“Pelas narrativas percebe-se que antes desse ápice, a violência já era parte da rotina do casal, mesmo que muitas das mulheres não tenham denunciados nas instâncias policiais, as agressões estavam presentes na relação afetiva ou conjugal. São relações marcadas por forte machismo, sentimento de posse dos homens sobre suas parceiras, e muito disso vem da raiz patriarcal de nossa sociedade. Observamos que as mulheres resistem e muitas adotam estratégias para se desvencilhar da violência, o que é bom”, analisa a pesquisadora Luciene Oliveira.
Depois da etapa de identificação da violência, há os obstáculos encontrados após os registros das ocorrências e instauração dos inquéritos. Este será o tema da próxima reportagem da série especial “Mortes Anunciadas”, bem como as políticas públicas que garantem a proteção das mulheres.
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