No Dia Estadual do Rio Paraguai, discussão marcou audiência pública requerida anualmente pelo deputado Lúdio Cabral (PT)
Projetos de hidrelétricas, hidrovia e portos, flexibilização de leis ambientais e o atual modelo de produção agrícola de Mato Grosso – que envenena águas e solo com agrotóxicos –, ameaçam a existência do Rio Paraguai e Pantanal como corredor biocultural com rico potencial de produção agroecológica e sustentável. Essa foi a reflexão proposta pelos comitês populares, comunidades tradicionais, organizações sociais e pesquisadores que participaram da audiência pública e sessão especial em comemoração ao Dia Estadual do Rio Paraguai, realizada na segunda-feira (14/11), em Cáceres.
Essa é a quarta audiência requerida pelo deputado estadual reeleito Lúdio Cabral (PT), em seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT). “Uma audiência que só acontece todos os anos, nos últimos quatro anos, porque os comitês populares do Pantanal têm uma capacidade de organização e mobilização impressionante. E estamos falando de uma data oficial, em que o Estado, o poder público, deveria se apresentar para ampliar as discussões. Isso fica de reflexão para nós”, afirmou Lúdio. “Me sinto presenteado por poder ouvir, aprender e, a partir do aprendizado, utilizar a nossa caixa de ferramentas parlamentar para lutar pelos direitos das pessoas e da natureza”, complementou.
Representando os comitês populares do Pantanal, Neuzo Antônio de Oliveira destacou o caráter lúdico e de denúncia do evento, marcado por cenas, místicas e outras intervenções, coordenadas pelos ambientalistas Vanda dos Santos e Isidoro Salmão. “A educação popular nos ensina que uma mística, que um símbolo, tem força maior do que a palavra. E é isso que o povo pantaneiro procurou trazer para essa audiência pública através da linguagem”, ressaltou Neuzo.
Neste ano, o evento também contou com a participação de representantes de países vizinhos, diante da ampla compreensão do Pantanal pelos movimentos sociais da bacia do Alto Paraguai e Bacia do Prata. “Nós temos consciência de que as divisas são imaginárias e que os povos, a biodiversidade, as águas dos rios, são as mesmas aqui e lá. Tudo o que se passa no Pantanal da Bolívia pode afetar o Pantanal do Brasil e vice e versa”, destacou a boliviana Sara Crespo.
Para a representante da Humedalles Sem Fronteiras, um dos principais desafios compartilhados pelos países pantaneiros é a exploração do meio ambiente pelo agronegócio. A solução, por outro lado, está na agroecologia. “Essa é a única forma de fazer frente à monocultura, de sustentar a vida, o mundo e as possibilidades de sobrevivência de nós seres humanos no planeta terra. Agroecologia é diversidade, alimento saudável, é vida”.
Cláudia Sala de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, lembrou que no bioma tem gente, é ocupado por comunidades tradicionais, povos indígenas, quilombolas, raizeiras, extrativistas, assentados e agricultores, dentre outros. "Falar de corredores bioculturais é falar da interconexão entre vidas e culturas no Pantanal. E estamos falando de muitos grupos, de uma diversidade de povos, de um bioma socialmente e culturalmente rico, um corredor que interliga diversos territórios. Quando falamos de corredor, não estamos falando de uma passagem, mas de um passado, de uma ancestralidade, daqueles que vieram antes de nós e ainda estão aqui”.
Denúncias
Clóvis Vaillant e Solange Ikeda, pesquisadores do Instituto Gaia, denunciaram os impactos de 165 projetos de instalação de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nos rios que deságuam no Pantanal e clamaram por “rios livres”.
Vaillant explicou que o Pantanal é uma combinação rara de aspectos ambientais, comprometida pela modificação da qualidade das águas pelas barragens. “As águas do Pantanal nascem nas partes altas, que se convencionou a chamar de planalto, em uma combinação perfeita de águas que sustenta toda a vida no bioma. Há um argumento de que a hidrelétrica não consome água, mas a água quando sai de uma hidrelétrica, ela sai mais salgada ou mais doce e isso compromete toda a base da vida do bioma”. O estudioso também lembrou que a hidrelétrica tem como única função gerar energia em uma das regiões com maior incidência de raios solares – uma fonte de energia limpa.
Mariana Lacerda e Marcos Wesley Pedroso, membros do coletivo PesquisAção, recordaram o histórico de ofensivas para a construção da Hidrovia Paraguai-Paraná, desde a década de 1990 até os dias atuais. Eles lançaram um alerta para os riscos da navegação industrial no Rio Paraguai. “A área é navegada desde muito tempo pelos pescadores pantaneiros, ribeirinhos, população e turistas. Ou seja, já é parte da cultura local e contribui com a economia da região. Já a navegação industrial permitirá a passagem de imensas barcaças carregadas por monoculturas para baratear o transporte de insumos. O projeto, que previa a implementação de um porto, após batalha judicial de dez anos, não saiu porque se concluiu que as características da região impedem uma navegação industrial sustentável”.
No entanto, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) permitiu, recentemente, o licenciamento de dois portos de menor porte para se somar ao terminal fluvial de Cáceres, com o argumento de que não estariam licenciando uma hidrovia. “Os projetos afirmam que o objetivo é permitir a navegação no Rio Paraguai, ligando-se à hidrovia já em funcionamento a partir de Corumbá com saída para o Oceano Atlântico. Não apresentaram nenhum estudo dos impactos dessa navegação no rio e alegam a inexistência de pessoas afetadas, apesar de todas as manifestações das comunidades locais e comunidades científicas”.
Após denúncias, o Ministério Público Federal deu início a uma ação judicial que questiona a completa ausência de justificativa para licenciar portos sem o licenciamento da hidrovia. O Estado, por sua vez, alega que paralisar o licenciamento vai contra o "direito ao desenvolvimento” e o “interesse público”. “É necessário uma redefinição do que é interesse público. Trata-se de impactos em um bioma que é considerado patrimônio da humanidade. Ou seja, a hidrovia não se resume a um contexto estadual de perdas e ganhos, mas implica em uma análise de risco e deve necessariamente levar em conta todos os aspectos singulares do bioma Pantanal”, defenderam.
Para Miraci Pereira da Silva, agricultura no assentamento Roseli Nunes e representante da Associação Regional de Produtores Agroecológicos (ARPA), o Pantanal está em perigo e as queimadas que assolaram o bioma em 2020 precisam ser lembradas como um alerta. Ela denunciou a contaminação das águas e da terra pelo veneno despejado nas lavouras do agronegócio, e o agravamento da seca.
“Uma pessoa em Mato Grosso consome 17 litros de veneno por ano, agrotóxicos proibidos em países da Europa. O nosso planeta está em chamas. Em 2020, tivemos mais de 40% do nosso bioma devastado e sentimos até hoje o desespero da natureza para se recuperar. O rio Paraguai é o rio mais importante do Pantanal, é essencial para a vida de mais de 120 milhões de pessoas no Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina. Em 2021, o rio Paraguai sofreu a sua seca mais longa em cerca de 120 anos. Foi possível atravessar o rio andando a pé”, afirmou Miraci.
“Mas o nosso povo resiste, plantando diversidade. Nós temos a agroecologia como instrumento de luta e de modo de vida. Nós não usamos veneno, nós lutamos pela soberania alimentar. Agroecologia é a nossa salvação. Ou plantamos sem veneno ou matamos a nação”, complementou.
Retrocessos na Lei do Pantanal
A bióloga Girlene Ramos e a representante do Observatório Ambiental de Mato Grosso (Observa-MT) Edilene Fernandes, falaram sobre as alterações da “Lei do Pantanal” na ALMT por meio da aprovação do PL 561/2022, proposto pela Comissão do Meio Ambiente.
“Nós entendemos que a Lei poderia garantir o respeito à biodiversidade desde que o estado cumprisse a sua função de fiscalizar a garantir as condições para que pantaneiros produzissem. Já o projeto aprovado esconde o interesse de grandes empresários e governantes em promover empreendimentos que desmatam o Pantanal. O projeto tramitou de forma muito acelerada, pegou carona em outro projeto que já existia, sem transparência do processo. Cometeram um erro gravíssimo de não realizar consulta prévia de indígenas, quilombolas, pescadores e ribeirinhos que vivem no território”, denunciou Girlene Ramos.
Na votação, o deputado Lúdio Cabral apresentou 12 emendas ao projeto. As emendas aprovadas asseguraram a proibição de PCHs e plantação em larga escala na planície pantaneira. No entanto, a lei foi aprovada com a permissão de pecuária extensiva em áreas de preservação ambiental, pasto em 40% de propriedades e liberação do uso de agrotóxicos na região.
“A aprovação dessa lei é um claro exemplo de como a Assembleia tem tratado as populações em detrimento de um modelo único de produção. Para a mudança de legislação no país, existe uma constituição com regras claras que precisam ser respeitadas. Por isso, o Ministério Público Estadual entrou como uma ação direta de inconstitucionalidade para anulação da Lei que só renovou os bloqueios que já existiam e trouxe várias permissões lesivas ao bioma. Sem nenhum tipo de consulta, sem considerar os riscos previstos pela Embrapa e sem respeitar o Código Florestal”, destacou Edilene Fernandes.