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José Benedito Canellas: A ponte de duas margens
Por por João Carlos Vicente Ferreira
24/09/2025 - 09:20

Foto: reprodução

Há nomes que chegam ao mapa político como rios, nascem discretos, tomam fôlego nos barrancos, e de repente são caminho, abastecimento, fronteira e travessia. José Benedito Canellas foi desses. Paulista de São Manuel, nascido em 3 de outubro de 1938, filho de Alberto Luís e Hercília, ele desembarcou no Oeste de Mato Grosso quando a palavra “fronteira” tinha cheiro de estrada vermelha e promessas recém-assinadas. Levou consigo o sotaque do interior de São Paulo e devolveu à terra adotiva a certeza de que a política, quando sabe ouvir o rumor das pontes e dos portos, também é ofício de engenheiro: mede vãos, calcula forças, estabiliza o terreno.

Dizem os afluentes da memória, e as atas igualmente, que ele começou como técnico em colonização e em integração rodoviária, num Brasil que abria clareiras com enxada e decretos. Em Cáceres, 1965, pediu licença para entrar pela porta mais estreita da política, a vereança, onde cada voto tem a face e a queixa do vizinho. Dali, ergueu degrau por degrau. Foi deputado estadual (1971–1975), deputado federal (1975–1979) e senador da República (1979–1987), sempre por Mato Grosso, no período em que o Estado ainda assentava as suas linhas de força depois da divisão que pariu Mato Grosso do Sul, divisão cujo eco atravessou seu mandato.

No plenário, Canellas falava como quem desenha mapas no ar. Era homem de comissões: Agricultura e Política Rural, Minas e Energia Saúde e Legislação Social; e de lideranças também, no princípio, ARENA; depois PDS; mais tarde PFL, porque a política também é uma estrada de curvas, e ninguém chega ao fim sem ter mudado de marcha. Foi líder na Assembleia de Mato Grosso e, na Câmara, tratou de assuntos de quem sabe que a economia da terra começa na enxurrada e termina no porto.

Mas para entendê-lo por inteiro é preciso escutá-lo como ponteiro de relógio que aponta duas margens. Uma, Mato Grosso, onde estava a origem eleitoral, a mesa de trabalho, o lastro. Outra, Mato Grosso do Sul, recém-nascido institucionalmente, mas já com voz e ambição. O jornalista Onofre Ribeiro escreveu que, por amizade e por agenda de desenvolvimento, Canellas dividiu seu esforço parlamentar entre os dois Estados, notadamente no diálogo e na articulação com Pedro Pedrossian, figura-síntese de Mato Grosso do Sul, por escolas, obras e estradas. Isso quer dizer recursos, emendas, telefonemas de madrugada, o fio que liga ministérios a prefeitos, gabinetes a obras de drenagem, o asfalto ao escoamento da safra.

Se a política é o lugar onde promessas viram concreto, Canellas deixou traços nítidos no repertório da infraestrutura. Ainda deputado, publicou e empurrou adiante um “Plano de Desenvolvimento Integrado do Alto Guaporé–Jauru”, um texto técnico de 1976, que tinha, nas entrelinhas, o credo de toda vocação interiorana: articular estradas, colonizar com método, amarrar economia e geografia para que o progresso não estourasse como enchente, mas avançasse como irrigação.

O empresário de chão batido

Empresário, proprietário rural, viajante, assim o singulariza o cadastro do Senado. Empresário, aqui, não é o que tem sala com tapete grosso e elevador privativo. É o que conhece o preço do frete e o nome do gerente da agência do Banco do Brasil; é o que sabe que uma ponte salva o lucro de uma safra inteira; é o que entende que a política, sem cronograma e planilha, vira retórica de salão. Canellas fazia as contas e fazia as pontes no parlamento e nos quilômetros de BR e MT que, aos poucos, foram desenhando o mapa da produção no Oeste.

No trato com prefeitos, havia um método: primeiro ouvir, depois medir, por fim ligar. O telefone, nesse tempo, era aparelho de puxar verbas. Os prefeitos chamavam-no “senador da estrada”, não por epíteto oficial, mas por hábito de linguagem; e se algum cronista não o disse, a memória popular o registrou em histórias de gabinete. Uma ponte liberada em Jauru, um convênio para um trecho da BR-163, um custeio de hospital em cidades limítrofes, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul tinham, ali, um despachante de alto nível. Em certas ocasiões, o senador mais parecia topógrafo: não se limitava a pedir; mostrava no mapa onde o orçamento federal podia render mais, travando batalhas milimétricas no labirinto ministerial.

Esse entusiasmo de infraestrutura retornou como homenagem póstuma. Em 2019, o Senado aprovou projeto, depois remetido à Câmara, para denominar “Rodovia Senador Benedito Canellas” o trecho da BR-070 entre o rodoanel de Cuiabá e a fronteira Brasil-Bolívia, sinal de que a obra de ligar pontos distantes acaba, cedo ou tarde, ligando o nome do homem à estrada que ele ajudou a forçar.

Mato Grosso do Sul: o outro lado da ponte

Há políticos que são do lugar onde nasceram; outros são do lugar onde venceram; Canellas foi do lugar onde precisaram dele. Ao longo dos anos 1970 e 1980, quando Mato Grosso do Sul precisava de quem conhecesse Brasília por dentro, ele se fez útil. A imprensa de Cuiabá registrou mais de uma vez essa vocação bifronte: “dividiu seu esforço parlamentar entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul”, anotou Onofre Ribeiro, e a frase não é metáfora ociosa, tinha o peso de repasses, de programas federais que alcançavam o Sul, de emendas construídas no corpo a corpo das comissões. A amizade com Pedrossian era mais do que fotografia ao lado; era engenharia política de longo curso.

Em MS, o quantificável se perde no tempo, e a hemeroteca ainda esconde detalhes em páginas amareladas, mas o qualificado persiste: a imagem do senador que atendia prefeitos sul-mato-grossenses; a defesa de ligações viárias que encurtavam distâncias entre municípios de fronteira; a atenção aos temas de educação e saúde em um Estado que crescia em população, escolas e hospitais, precisando de um padrinho em Brasília. A economia real mede assim seus benfeitores: no tempo de viagem que diminui, na ambulância que chega e na saca de milho que encontra estrada.

Um estilo de fazer política

No microfone, Canellas preferia a clareza do argumento às luzes do palco. Discursava com o mapa do país em segundo plano. Não era tribuno de feira, nem orador de garganta; era homem de relatório, de voto em comissão e, quando necessário, de liderança da base. Talvez por isso tenha colecionado, ao longo de décadas, homenagens nem sempre midiáticas, mas de alto quilate: do “Mérito Rondon” às ordens do Ipiranga, Aeronáutica, Congresso Nacional e Estado de Mato Grosso. Diplomas que, somados, dizem o que as paredes do gabinete sabiam: o senador tinha trânsito, e o trânsito, na política, é o outro nome da eficácia.

No repertório escrito, deixou peças de atuação parlamentar e aquele plano regional do Guaporé–Jauru que, hoje, ajuda a enxergar a coerência de sua carreira: o desenvolvimento como vereda de muitas mãos, prefeitura, Estado, União, produtores, comércio, e como combate aos latifúndios da distância.

A morte e a permanência

Na madrugada de 1.º de janeiro de 2016, quando o calendário troca de pele, Canellas partiu em silêncio, vítima de infarto, em sua casa, em Cuiabá. Tinha 76/77 anos, conforme variaram as primeiras notas; a informação consolidada foi de morte por infarto, velório na Dom Bosco, sepultamento no dia seguinte. Mais do que o detalhe fúnebre, as notas lembravam o itinerário público: vereador, deputado, senador, consultor na maturidade. A vida inteira com o ouvido encostado no motor do desenvolvimento regional.

A memória social escolhe suas âncoras. No caso dele, ficou a figura do “líder político do passado” que, em vez de se recolher, continuou a circular, a aconselhar, a traduzir para a nova geração o latim das repartições. Ficou também o lastro de família e de município, Cáceres, onde o primeiro mandato o batizou como homem público, e de regiões inteiras, como o Sul do novo Estado, que o reconheceu como interlocutor.

O homem por dentro da biografia

Convém dizer que o político não se entende apenas por siglas e votações. Há sempre um “nó de carreira” que sustenta a personalidade pública: em Canellas, o nó era a cruzeta da infraestrutura com a economia do cotidiano. Na prática, isso significou perceber o Brasil de dentro, o Brasil que depende da ponte para chegar ao porto, que precisa da estrada para pôr o feijão no mercado, que mede o presente pelo preço do diesel. Sendo empresário e proprietário rural, ele conhecia as rugas do sistema: sabia o que era perder uma safra por falta de bueiro, sabia o quanto custa um dia de estrada parada. Por isso falava com gravidade quando o assunto era orçamento de transportes, ou quando alguém lhe pedia atenção para um trecho da BR-070: não era apenas um ramal; era a coluna vertebral do escoamento.

Na cultura política do Centro-Oeste, onde a colonização econômica dos anos 1960 e 1970 redesenhou cidades e vocações, figuras como Canellas foram tradutores. Traduziram às pressas da fronteira para a lerdeza de Brasília; traduziram o latifúndio da esperança em capítulos de lei, em ofícios, em audiências. O que se colheu disso? Estradas com menos barro, escolas com mais carteiras, hospitais com mais leitos. E, sobretudo, a certeza de que a política não é ofício de santos, é ofício de insistentes.

Um louvor necessário

É motivo justo enaltecer Canellas, e não apenas por ter escalado todos os degraus da representação. É justo por ter compreendido que Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, ainda quando separados por decreto e por história, continuariam ligados por interesses geográficos e econômicos. Um senador pode ser, às vezes, um embaixador de duas margens. Ele o foi. Trabalhou como quem aceita que o mapa não acaba no traço da Assembleia Constituinte: continua pelos rios, pelas rotas de boi e soja, pelas urgências municipais que falam todos os sotaques. A homenagem rodoviária de 2019, diz isso no concreto: dar o nome de “Senador Benedito Canellas” a um trecho da BR-070 é reconhecer que o homem foi atalho, travessia e pavimento.

Epílogo com cheiro de terra molhada

A cena final não tem clarins: é 1.º de janeiro, feriado de promessas, e o noticiário local anuncia: “Infarto mata ex-senador de MT”. Fica a notícia, passa o jornal. O que não passa é o que se repete sem alarde: o caminhão que cruza a ponte, a ambulância que chega cinco minutos mais cedo, o ônibus escolar que não atola na curva. A política, a boa política, tem esse pudor: esconde-se no cotidiano.

Se alguém perguntar quem foi José Benedito Canellas, a resposta pode vir simples, como convém aos homens que serviram: foi o senador-ponte. Começou em Cáceres, atravessou a Assembleia, a Câmara e o Senado; transitou por governos e siglas sem nunca perder a bússola do desenvolvimento; repartiu seus esforços entre o velho e o novo Mato Grosso, como quem sabe que a geografia manda mais que o calendário; deixou escritos e planos, condecorações e histórias, e por fim ganhou a estrada com seu nome, onde todo dia alguém apressa o futuro.

João Carlos Vicente Ferreira é escritor, membro
da Academia Mato-Grossense de Letras, do Instituto
Histórico eGeográfico de Mato Grosso, da Academia
Brasileira de Belas Artes, dentre outras instituições.

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