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'Beja' reencontra sua irmã Marilda após 57 anos de ausência
Por Diário de Cáceres
06/12/2014 - 21:02

Foto: Amanda Alcântara Diório

Marilda de Carvalho Estigarribia , de 74 anos, chegou no final da tarde de hoje a Cáceres, cidade que deixou há 57 anos. Veio com o esposo, Hermínio, e com a filha, Daleina.

Devidamente esperado na rodoviária, o grupo foi levado ao Lar Servas de Maria para encontrar uma pessoa conhecida e querida em Cáceres: Benjamin, o Beja.
"Meu irmão, olhe para mim, você sabe quem sou?". O ohar, sempre terno, ficou mais atento. "Marilda"! O abraço foi longo, pondo fim, enfim, a quase seis décadas de separação.
Dona Marilda mora com a família em Ilha Solteira/SP. Foi embora de Cáceres com 17 anos e só hoje voltou. "Meus pais eram muito bravos. Eu não podia conversar com amigas, não me deixavam estudar. Vivia triste, sentia um vazio em mim. Mesmo sentindo em deixar meus irmão, fui embora com uma família para Corumbá/MS. Cuidava das crianças da família e deixei de ter contato com a minha. Mas a saudade sempre existiu".
Realizando um sonho -aprender ler e a escrever, dona Marilda acabou realizando outro, rever o irmão. Contou na escola (EJA) , onde frequenta há 11 anos, que tinha o sonho de vir a Cáceres em busca de familiares. Sua professora, Marimar Souza, difundiu pela internet o pedido de ajuda, postando a foto de Benjamin ainda moço. O pedido chegou a mim através de uma amiga. Outro amigo informou que "Beja", de imedato reconhecido na foto, estava no asilo.
A reportagem do DC foi lá, constatou o fato e lançou o pedido de ajuda através do facebook. Foram feitas doações de cinco, dez, 50, 100 reais. A corrente de ajuda cresceu, o Juba e o grupo Soteco ajudaram completando o que faltava, assim como muitas pessoas, tanto que foi possível a vinda de três familiares.
Eles ficarão no Lar por uma semana. Quando sai de lá, hoje, me sentindo feliz ao ver a felicidade de dona Marilda, deixei Beja já a relembrar fatos...fatos que fizeram dele uma pessoa conhecida e querida em Cáceres.
Por anos cuidou da limpeza da Catedral de São Luiz e da Perpétuo Socorro. Apadrinhou dezenas de crianças. A família foi diminuindo com a morte dos pais e de 6 dos nove irmãos. Além dele e de dona Marilda, há uma irmã-afirmam, que mora em Mato Grosso do Sul, mas da qual estão sem notícias.
Mas a faceta mais conhecida de Beja era sua presença nas festas. Casamentos, aniversários. Tempos de Cáceres com vizinhos conversando com as cadeiras nas calçadas. Tempos de festas com portas abertas. Beja era atração. Quieto, comia como ninguém . A docilidade e ternura expressas no rosto que se tornou querido das então crianças de Cáceres. Crianças que se tornaram adultas e doaram para que ele reencontrasse sua irmã.
Respondo agora a algumas perguntas: Benjamim ainda tem a hérnia, que não pode mais ser retirada. Ele vai fazer 85 anos em março, caminha com a ajuda de um andador, esta no Lar há 4 anos, e como todos de lá, está bem cuidado.
Mais leve com a missão cumprida, depois de bater em muitas portas (ouvindo sempre: o Beja, claro que lembro, festa sem o Beja não era festa!) deixo vocês agora com a crônica do Guilherme Vargas, que retrata quem foi -e quem sempre será- Beja Benjamim para os cacerenses. Expresso aqui minha gratidão a todos que colaboraram. E também, com o texto de dona Marilda, do livro com alunos do EJA. Ela hoje me contou que nunca desistiu de ser alfabetizada, processo que começou quando tinha 63 anos. "Foi como renascer"-disse.
 
Memórias de Marilda

Meu nome é Marilda e nasci em Cáceres, Mato Grosso. Quando eu era criança minha mãe não deixava brincar com ninguém.
Eu tinha 12 irmãos e brincávamos todos juntos, com bonecas, caminhão e bola. Fui crescendo e minha mãe nunca nos colocou em uma escola. Ajudava na cozinha e plantava feijão com meu pai. Trabalhávamos também na colheita de algodão e junto aos meus irmãos ensacávamos os grãos de feijão e vendíamos tudo, além disso tirava leite de vaca no curral.
Minha mãe era cuiabana e cabelos eram longos. Eu queria morar na cidade e ela nunca deixou. Só vivi no sítio.
Na adolescência me sentia uma mocinha, crescendo no sítio onde nasci, mas continuava pedindo para ir morar na cidade, queria estudar, só que meus pais não queriam que eu estudasse, diziam que não precisava.
Eu estava com doze para treze anos e só trabalhava. Apanhava dos meus pais quando não obedecia.
Não tinha o direito de sair para passear com os amigos só ficava em casa trabalhando ou assistindo televisão, onde minha mãe obrigava os filhos a ficar na sala. Eu sempre orientava os meus irmãos a obedecer a nossa mãe. Tudo o que ela pedia eu procurava fazer, inclusive ela adorava tomar guaraná ralado e era eu quem ralava e deixava em uma vasilha para ela tomar duas vezes ao dia.
Muitas vezes ia em minha casa professores dizendo para ela nos colocar na escola, mas ela não deixava e nem aceitava que os professores fossem até nossa casa nos dar aula. Ela dizia que não sabia ler e que por isso nós também não aprenderíamos, tínhamos é que trabalhar isso sim.
Tínhamos uma casa na cidade, mas minha mãe alugou só para não deixar os filhos morarem lá.
A compra era feita por ela, roupa, alimento, medicamentos, calçado, etc, mas não dava dinheiro nenhum em nossa mão. Quando os vizinhos nos convidávamos para festas de aniversário, ela não deixava e quando deixava, não dava dinheiro para comprar presente, ela dizia que quem tinha que dar presente era quem convidava.
Com dezoito anos, disse para minha mãe que iria embora. Fugi com uma família para Corumbá, viajei de navio e foi uma das experiências mais linda da minha juventude. Fiquei com eles durante um ano mais ou menos, até meus irmãos virem me buscar.
Depois voltei para casa e comecei a namorar com um rapaz alfaiate. Até ele me convidar para ir com ele para Corumbá. Casei com ele escondido e fui embora. Depois de um tempo minha irmã me procurou várias vezes para voltar, mas eu não quis, pois estava casada e feliz e não iria deixar meu marido. Disse que um dia iria voltar para visitar minha mãe novamente. Vivemos felizes por muito tempo. Tivemos três filhos, um casal de gêmeos, a Dalene e Luiz, depois tive a Vanilda. Vivemos juntos por oito anos.
Passei por vários problemas de saúde, eu e o meu marido. Ele veio a falecer de infarto e depois de alguns anos, conheci meu atual marido, o Erminho, na igreja católica.
Foi amor à primeira vista. Ele ficava me olhando e nos encontramos na pracinha.
Namoramos, ele era operador de máquinas. Depois nos casamos e ficamos por um tempo em Corumbá, alguns anos mais tarde fomos para Campo Grande e devido o serviço dele paramos aqui em Ilha Solteira.
E somos muito felizes.
Hoje tenho 74 anos e continuo morando em Ilha Solteira com meu esposo Erminho e meu filho Edilson.
Meu esposo é muito companheiro, mas é muito ciumento, pois ele não tem muitas pessoas para conversar e não gosta que eu converso com ninguém.
Vamos juntos na igreja evangélica, no supermercado e no comércio. Já estamos juntos a quarenta e cinco anos. E vivemos felizes porque somos companheiros.
Para que minha felicidade seja completa, quero encontrar minha família que mora em Cáceres, que a alguns dias tive a triste notícia que meus pais e mais cinco irmãos já faleceram, só restaram eu uma irmã e meu irmão, onde pretendo o mais rápido possível ir ao encontro deles. Sei que Deus está preparando esse nosso encontro.
 

Beja, Benjamim (Gulherme Vargas)

 

E nas festas, aquelas de maiores pompas, ele chegava: -Ele chegou! E não poderia faltar, afinal a presença dele era o prestígio para o evento.

Foram muitos os mitos que viviam na cidade; ficavam ali, entre o folclore e a materialidade dos fatos vividos. “A cidade vive dos que vivem nela”; a cidade vive do seu povo e aqueles que se tornam mitos de suas cidades são também elementos importantes da caracterização da identidade local. Um povo que tenha identidade cultural é mais feliz porque sabe o fundamental sobre si: é um povo que sabe quem é! Seria menor o Rio de Janeiro sem o profeta Gentileza; São Luis do Maranhão sem Ana Jansen não seria a mesma e Cuiabá sem Mãe Bonifácia, Maria Taquara e até Jejé de Oyá... “seria como um jardim faltando flor”... perderia parte de sua alma.

E como se faz um mito? Acredito que eles sejam predeterminados assim, afinal tem que se ter muita certeza de si para ser um mito. Eles não se autointitulam, eles nascem para vencer as lógicas sociais e determinar que o mundo é maior... e além. O mito é gente e é mais gente que as pessoas “normais” porte tem seus fatos folclorizados, que lhes agrega magia a vida! Tornam-se fabulosos.

 

 

Cáceres tem alguns. Beja é assim... Benjamim. Aparecia ele na festa: -É Beja! Que enchia a nós, as crianças da época, de dúvidas... Beija quem?.. É um Beijoqueiro? Belas festas, tanta fartura. Ele arrematava um bom prato e eu me perguntava: porque ele não trouxe a família dele?... depois descobrir que a família dele era todo cacerense!

Assim se fez Beja a lenda. Diziam que guardava em sua mente um calendário fantástico com data de aniversário das pessoas daqui. Que memória, eim! Sabia a data, o local e a hora de chegar, seja na casa ou em algum clube, para as festas mais alegres. Sempre bem apanhado e sem pronunciar uma palavra sequer, bastava apenas subir as bochechas e fechar os olhos em um sorriso e todas as portas já estavam abertas; isso é magia, é fábula de seres mágicos, como de fato deve ser Beja.

Ah! Atribuía-se a ele tocar os sinos da Catedral São Luis e da Igreja Perpétuo Socorro e também a limpeza delas. Difícil aceitar ajuda, limpava sozinho! Para mim, haveria uma porção de seres mágicos que o ajudava, afinal uma igreja que guarda um dragão amarrado com fios de cabelos de Nossa Senhora só pode atribuir magia a seu maior guardião e cuidador.

Ele é uma mistura de Carlitos de Charles Chaplin com Chaves de Roberto Bolaños. Carlitos pela sua simplicidade feliz e Chaves pela pureza e por se agradar pela boa comida! Mas estes, Chaves e Carlitos, são personagem; Beja é uma pessoa folclorizada, que além de ter diversos mistérios fabulosos que o cerca, é humano! Portanto está na condição de passar por tudo que sofre o corpo e a vida. Mesmo que possa ter sofrido, Beja e qualquer um desses mitos, parece estar incólume, porque estão em um grau maior de evolução e são imortais.

Os mitos não somem, eles pairam no ar e se espalham na memória. Como eles tem uma autodeterminação impactante, imaginamos que sempre estão bem. Beja está lá no Lar das Servas de Maria, e a gente só percebeu que  ele estava lá quando o destino mandou notícias e uma das irmãs dele mandou avisar que procurava alguém da família... Achou e está vindo visitá-lo. Quantas décadas de distanciamento e agora é possível vir, voltar e ver que Beja é pessoa muito querida e sempre será. Que momento único

Sortudo de quem conquistar a condição de ser folclorizado, por que esses foram alem e fugiram do padrão. Mais feliz mais ainda se for por memória de afeto que se tornaram mitos. Ainda há tempo de viver ou reviver estória de Beja, antes que o corpo parta e fique a memória eternizada.

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