O povo xavante vê a morte como uma viagem para uma grande jornada, a eternidade. Um lugar especial, enfim. E cada viajante deixa um legado para os que ficam. Caso se trate de um guerreiro, seus irmãos, seu filhos precisam continuar sua história.
Se é um sábio, sua memória, sua sabedoria são fundamentais para a sobrevivência daquilo que se tem de mais sagrado, que são as tradições, a cultura. E também há um compromisso de perpetuar seus ensinamentos e vivenciá-los como prova de respeito e gratidão.
Há um ano aproximadamente, acompanhei a partida de um sábio xavante. Houve uma comoção em toda a Nação. Uns cortaram cabelos, outros se isolaram, outros até pareciam chorar (nas minhas idas à aldeia na Terra indígena de São Marcos, poucas vezes vi um xavante chorar).
Essas lembranças me retornaram agora com a partida do Maldonado – Carlos Alberto Reys Maldonado – que nos deixou no último sábado. Quem o conheceu e os que tiveram o privilégio de com ele conviver, sabem que se trata também da viagem de um grande sábio.
Maldonado é um desses personagens que nos confundem; sua ótica sobre a Vida é outra, muito além do que percebemos. Sua capacidade de ver - e enxergar - o mundo e de nos mostrar, sempre foi assustadora.
Assustadora porque, generosamente, ele repartia o que sabia nas salas de aula, nos bares, nos bate-papos informais e nos deixava inquietos, incomodados com as verdades das quais ele era portador.
Por muitas vezes eu me perdi ouvindo suas falas seguras, lógicas e amorosas. Nas conversas que tivemos, sempre fiquei comovido também pelo seu comprometimento e pela busca do conhecimento.
Por seu intermédio tive a oportunidade de conhecer Dom Pedro Casaldaliga, seu grande amigo Pedro. Também convivi com o conceituado dramaturgo Zé Celso Martinez Correa, seu amigo Zé.
Amizade essa nascida nos anos 80, na resistência ao regime militar, quando ele fez parte do renomado grupo de teatro Oficina. E dentre tantas oportunidades que ele me proporcionou, ainda trouxe a Luna - sua linda e talentosa filha - para teatro Cena Onze (e que agora está na USP cursando artes cênicas).
A sua maneira despachada de ser, quase sempre rindo de tudo, destoava dos cargos que ele ocupou, como o de Secretário de Educação do Estado e do Município, ou de representante da Unesco ou ainda de ´professor da Unemat.
Às vezes, dava a impressão de desrespeito, mas, na verdade, seus valores sempre estiveram muito além das convenções sociais. Sua cabeça e seu coração estavam noutro tempo e lugar.
As teorias defendidas por Maldonado se comprovam a cada dia, como a crueldade do sistema capitalista, ou as violências praticadas pelas grandes corporações, que investem na manutenção da miséria e da ignorância, ou sobre a importância da educação e da arte como ferramentas de mudança e conscientização.
Ultimamente, ele estudava a Gênisis e nos trazia sua lógica sobre Deus. Não é fácil compreendê-lo! Bem mais simples é entender somente o que interessa ao capitalismo.
Penso que nós, os não índios, deveríamos aprender com o povo xavante e, além de demonstrar nossa dor, também preservar os ensinamentos do sábio e generoso Professor Maldonado, comprometendo-nos em continuar na busca do conhecimento e vivenciá-lo sem preconceitos, sem meias verdades.
Ainda é necessário registrar que minha aproximação com a etnia xavante também foi motivada pelas orientações do mestre Maldonado, onde fui batizado pelo ancião Tobias e recebi o nome de Watanauê.
Adeus, Maldonado. Até qualquer dia, meu amigo. Ou, como se diz no idioma Xavante: ITSIWAIHU, MALDONADO, NIMAMEPTSI TSIWA’RU MARANA WADZA WATSITSÕPETENI!
FLÁVIO FERREIRA é professor em Mato Grosso.