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Dona Geni
Por por Rosana Leite Antunes de Barros
27/12/2016 - 07:15

Foto: arquivo

Era criança, década de 70, quando comecei os meus questionamentos sobre a vida. Estava na época dos ‘porquês‘, que todo infante passa. Conversava com a mamãe, e, a ela tudo se dirigia em forma de inquirição.

 

Tínhamos uma vizinha por nome Geni, que aparentava ser sofrida, motivo de muita indagação da minha parte.


Comecei a perceber os costumes daquela mulher, e, na minha cabeça infantil, fiquei intrigada. Ficava o tempo todo trancada em casa com as duas filhas pequenas, uma de três e outra de seis anos. O marido era quem costumava levar as meninas para a escola. Vivia diuturnamente dentro do ambiente doméstico.

 

De vez em quando, ela chamava a minha mãe para trocar duas palavras no muro dos fundos. Uma vez precisou de uma xícara de açúcar para fazer café.

Ficava o tempo todo trancada em casa com as duas filhas pequenas, uma de três e outra de seis anos

 

Outra situação me deixou bastante confusa: Ela havia chamado a minha mãe na mureta, e, quando o marido chegou, saiu desesperada para atendê-lo, explicando que precisava terminar o almoço. Algumas vezes, ouvi o homem a ela se dirigir de forma ríspida. Explicaram-me que todo casal briga. Com gritos? Perguntei. E resposta foi imediata: "infelizmente". 


O mês de junho chegou, e a vizinhança do bairro resolveu fazer uma festa junina. Foi muita alegria. Fiquei eufórica, pois, as crianças iriam dançar quadrilha. Tudo preparado com muito carinho pelas mulheres. Na verdade, apenas algumas mulheres contribuíram.

 

Senti falta da Dona Geni na organização do evento. O grande dia chegou. Para as crianças, esse tipo de episódio marca indelevelmente a memória. E a minha não foi diferente. Várias mesas e cadeiras foram colocadas em uma das ruas do bairro, onde todas e todos se reuniram para a confraternização. Avistei a Dona Geni chegando com as filhas e o marido.

 

As mulheres começaram a falar da importância de ela ter ido. Porém, ficou pouco tempo, apenas de cabeça baixa e não cumprimentou ninguém. Pensei: "Ela é estranha, não gosta das pessoas".


Chegamos em casa radiantes, e já no horário de dormir. Quando acordei, fui direta: "A senhora viu como a Dona Geni é grossa? Ela sequer nos cumprimentou". Muito sábia, a minha amada genitora fez o possível para contemporizar: "Será que ela não estava com algum problema?". Me calei, mas, não fiquei satisfeita com a resposta. A reflexão aconteceu: "Acho que é mal-educada".


Dona Geni e o marido mudaram de perto da nossa família. Ficamos sem saber notícias daquela família por um tempo. Um dia, meu pai chegou do trabalho bastante assustado. Fiquei sabendo da morte da mulher. Do que? Perguntei. E eles responderam: "suicídio‘".


Passado algum tempo, quando já me encontrava na adolescência, conversei com meus pais, ao perceber uma tia que se calara após o casamento. Me foi explicado que algumas mulheres acabam perdendo o gosto pela vida.

 

Muitas vezes, por temor ao marido, em razão do ciúme exacerbado, acabando na introspecção. Lembra da Dona Geni? Meu progenitor perguntou. Respondi: "Sim, ela foi nossa vizinha estranha". Ele então me assegurou: "Aquilo era sofrimento. Quando cometeu o suicídio, deixou um bilhete afirmando que o ciúme do marido era tanto, que desistira de viver".


Convivo, na atualidade, com mulheres vítimas de violência doméstica. Quando me deparo com aquelas que sofreram pelo pior sentimento do mundo, o ciúme, a vida da Dona Geni, passa como um flash.

 

Com muito mais propriedade, passei a entender algumas mulheres que se resumem à vida dos filhos, filhas e marido. Entendi, que muitas não são mal-educadas, como pensava na infância. Apenas são proibidas de expressar sentimentos... 

Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual

 

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