Privação de liberdade, trabalhos forçados e sem remuneração, desrespeito à liberdade religiosa e à diversidade de orientação sexual, internação irregular de adolescentes e castigos que podem, inclusive, configurar crimes de tortura. Estas são algumas das violações identificadas em uma fiscalização realizada em 28 comunidades terapêuticas (CTs), duas delas em Mato Grosso.
A vistoria ocorreu em outubro do ano passado e foi feita pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF). O relatório foi divulgado anteontem (18) e teve como base a legislação nacional e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Além de Mato Grosso, a ação conjunta, que mobilizou cerca de 100 profissionais, ocorreu em Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal. No Estado, foram inspecionadas a CT “Recomeço”, localizada no Balneário Letícia, na região do Coxipó do Ouro, em Cuiabá, e a “Solares”, na Rodovia Emanuel Pinheiro (MT-251), no Distrito Aldeia Velha, em Chapada dos Guimarães (distante 65 quilômetros da capital).
“Em cada uma das comunidades terapêuticas visitadas, houve referências à existência de um período inicial de internação, no qual as pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas ficam incomunicáveis. Nos casos mais contundentes de violação de liberdade, em que a internação foi realizada por meio de resgate, há internos sem documentos pessoais”, aponta o relatório.
Esta é uma das situações encontradas na comunidade “Recomeço”. “Cumpre destacar que toda documentação pessoal do interno é retida pela instituição quando ele chega. Como geralmente eles vão por meio de resgate, nem sequer estão com os documentos pessoais. Muitos internos não possuem qualquer documentação que legitime que eles são realmente quem os funcionários afirmam ser”. Na mesma instituição, o levantamento aponta a existência de violação de sigilo de correspondência e de acesso a meios de comunicação, além de restrições do contato com o mundo exterior convergem para a violação de diversos aspectos dos direitos das pessoas com transtornos mentais.
Contudo, as irregularidades começam antes mesmo da internação. Conforme os responsáveis pela inspeção, a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001) define três modalidades de internação, sendo elas, a voluntária (com o consentimento do usuário), involuntárias (sem o consentimento do usuário, a pedido de terceiro e realizada por um médico) e compulsórias (determinadas pela Justiça).
Nos casos de internações compulsórias, via de regra, há uma determinação judicial para que seja bloqueado um montante de recursos públicos suficiente ao custeio do tratamento, com identificação da entidade para onde deve ser dirigido o adolescente. A “CT Recomeço”, por exemplo, recebeu num período inferior a dois meses o total de R$ 51,4 mil.
“Vale ainda registrar que nessa mesma CT houve relatos de que pessoas internadas compulsoriamente foram conduzidas de maneira violenta pela própria Polícia Militar. Sem embaraço, o coordenador da CT Recomeço relatou que: [...] a maioria dos internos chegou acompanhados da Polícia Militar por serem oriundos de internação compulsória. Ele relatou que os adolescentes geralmente chegam algemados e quase sempre à noite. ... Eles chegariam à instituição assustados com a força policial e lá ‘receberiam todo carinho, o que ajudaria na inserção’”, traz um trecho do relatório.
Com relação ao cumprimento dos quesitos legais exigidos em internações involuntárias, apenas duas CTs informaram realizar a comunicação ao Ministério Público Estadual (MPE), sendo elas, a Recanto da Paz, em Limeira (SP), e a Solares, em Chapada dos Guimarães. “Entretanto, esta última informou que faz tal comunicação apenas mensalmente, através de lista, descumprindo, portanto, o prazo legal de 72 horas. Tal situação é grave e demonstra a ação ao arrepio da lei”.
Na “Solares”, o levantamento mostra ainda o emprego da violência física, relatado sobretudo em casos de tentativas de fugas, sendo praticado, por exemplo, por meio de socos nos olhos e daquilo que os internos denominam “mata-leão”. “Foi relatado pelos internos que os terapeutas utilizam violência física para aplicação de “medidas educativas” (sic), além de verbalizarem que havia porretes na instituição. A equipe de inspeção não conseguiu localizar esses instrumentos ou qualquer outra ferramenta para contenção ou agressão”, diz.
Durante os resgates às CTs, os relatos também incluem violência física, contenção mecânica e química. “Não há protocolos internos para tal procedimento”. Além disso, segundo relatos das próprias equipes das instituições e dos internos, o valor médio cobrado para realização desse procedimento, na Grande Cuiabá, é de R$ 700,00. “O preço aumenta se o resgate for realizado em municípios do interior.
Foi relatado pelos internos e pela equipe da instituição a ocorrência de um óbito, no dia anterior ao da inspeção, de um “resgatado” de Tangará da Serra, no qual aplicaram injeção sem acompanhamento médico”.
Também é frequente o uso de eufemismos entre monitores e internos para se referir ao coquetel de medicamentos usado nessas ocasiões (que inclui haldol, neozine, diazepam e outros medicamentos psiquiátricos). Em Pernambuco, foi chamado “garapa”. Em São Paulo e em Mato Grosso, “danoninho”. Além disso, essas medicações psiquiátricas seriam ministradas pela técnica de enfermagem ou pela enfermeira, sem prescrição médica.
No geral, identificou-se que a lógica de várias CTs é oferecer facilidades para receber pessoas voluntariamente, como transporte e opções para o pagamento. Entretanto, tais facilidades desaparecem quando a pessoa deseja deixar esses locais e inúmeros obstáculos e dificuldades lhe são impostas, como multa em caso de quebra de contrato, retenção de documentos, pressão sobre familiares, entre outras. Também há foi uma escassez de profissionais para a oferta de assistência integral.
Procurado pela reportagem do Diário, o diretor da CT Recomeço, Thiago Henrique da Costa, negou as irregularidades. “A nossa comunidade não tem nenhum muro ou cerca elétrica. Pelo contrário, tem um espaço amplo com balneário, quadra esportiva, campo, playground e com quatro refeições diárias. Temos psicopedagogo, psicólogo, enfermeira e terapeuta”, afiançou.
Ele garante que a comunidade tem alvarás de funcionamento, da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros, além de possuir certificados de todos os profissionais e que toda semana é feita reinserção social e familiar dos internos. Todos os pacientes estão em tratamento por determinação judicial.
“Nós, não usamos psicotrópicos e o que eles encontraram foi um omeprazol, que é para estômago, e dipirona. O tratamento que usamos é o diálogo. O psicólogo trabalha o cognitivo, o comportamento e o existencial. A psicopedagoga acompanha a questão escolar e, com a enfermeira, os meninos têm aulas de educação em saúde. Já o terapeuta faz reuniões de grupos anônimos. Os que têm comorbidade, com laudo médico, a gente fez acompanha ao Caps (Centro de Apoio Psicossocial) do município”, afiançou. A reportagem não conseguiu falar com os responsáveis pela CT Solares.