Bolivianos 'nascem' em Cáceres
Por O Globo
17/10/2012 - 14:00
San Juan de Corralito é um daqueles lugares esquecidos pela
civilização. Uma fileira de barracos feitos de tábuas desiguais
margeia o rio que separa Brasil e Bolívia. Nas vendinhas, produtos
básicos são comercializados ao som de Michel Teló nos alto-falantes.
No paupérrimo povoado boliviano, o número de “brasileiros” vem
crescendo. As bolivianas grávidas cruzam os limites do país para dar à
luz na cidade de Cáceres, no Mato Grosso, de forma a garantirem aos
seus bebês uma cidadania com mais direitos. E não é só isso. A fim de
driblar uma vida miserável, os bolivianos adultos obtêm a
nacionalidade brasileira por meio de uma certidão de nascimento
tardia. Com isso, eles conseguem receber o Bolsa Família e até a
aposentadoria pelo INSS, no Brasil, apesar de continuarem a viver na
pátria de origem.
— Você não veio do Brasil para me deixar mal com meus vizinhos, né?! —
afirma um morador da vila boliviana, que não quis ser identificado,
mas que confirma a história. — Tem muita gente que nasceu aqui, mas
conseguiu o documento brasileiro e recebe uma aposentadoria.
Esse boliviano não acha certo fazer isso, mas entende quem usa esse
recurso para melhorar de vida, porque a assistência do governo de seu
país é precária. O “Bolsa Família” boliviano, pago para aqueles que
mantêm o filho caçula na escola, é de apenas R$ 70 por ano. Ele, que é
pai, viu os filhos mais velhos fazerem as malas e partirem para o
Brasil. E assiste aos mais novos traçarem os mesmos planos.
A cem quilômetros da fronteira com a Bolívia, o cartório da cidade de
Cáceres recebe cerca de três pedidos por mês dessas certidões de
nascimento tardias. Segundo Juliano Alves Machado, oficial de registro
civil do município, frequentemente os bolivianos requerem o documento.
Quando há evidências de que o pedido foi feito por um estrangeiro, o
processo é encaminhado à Justiça.
ATÉ 500 mil ilegais
Apenas três processos foram julgados improcedentes neste ano. Um deles
datava de 1994. Nele, a pessoa que se dizia brasileira nem sabia falar
português. Fontes dos dois lados da fronteira confirmam que vem
crescendo o número de bolivianos que vão até Cáceres para conseguir o
documento. E eles voltam todo os meses para sacar os benefícios do
governo brasileiro.
— Nós já sabemos disso — afirmou ao GLOBO o ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, com relação ao pagamento de aposentadoria e outros
benefícios para estrangeiros que vivem fora do Brasil.
Protagonista do crescimento econômico na América do Sul e com um
mercado de trabalho ainda aquecido, o Brasil nunca atraiu tantos
imigrantes. Já há 1,54 milhão de estrangeiros vivendo legalmente no
país. Com relação aos ilegais, não há registros precisos, mas as
estimativas chegam a 500 mil. O governo é mais conservador e prefere
adotar as projeções feitas pela Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), de 150 mil ilegais.
As crianças bolivianas cruzam a fronteira todos os dias para estudar
na escola do Exército Brasileiro. Não há restrições para estrangeiros
frequentarem escolas públicas aqui. O taxista Benedito da Silva
assiste ao vaivém das crianças enquanto espera passageiros do lado
brasileiro da fronteira, no povoado de Corixa. Ganha R$ 150 por viagem
até Cáceres. Ele leva bolivianos que querem comprar comida e volta com
sacoleiros em busca das quinquilharias do outro lado.
— Quando o dólar está bom, faço três viagens por dia.
Em Cáceres, a bioquímica boliviana Zulma Chuque trabalha como camelô.
Vende sapatos da Bolívia, mas sonha em trabalhar em um laboratório e
diz que já deu entrada nos papéis para obter o reconhecimento de seu
diploma. Quando ouve a pergunta sobre sua situação como imigrante,
interrompe a entrevista e diz que não quer ser fotografada.