Óbvio que este não é um artigo sobre música. Apesar de tocar piano desde pequena e, por isso ter aprendido a gostar de clássicos como Bach com sua cantata Jesus, alegria dos homens, Noturno (op.9 No.2) de Chopin (meu favorito), Beethoven com seu Ode à Alegria da célebre 9ª Sinfonia ou a tristíssima Sonata ao Luar, a maravilhosa Marcha Turca do gênio Mozart, O lago dos cisnes de Tchaikovsky que me arrebatou com a interpretação no balé dramático...

Também aprecio as diversas variações do Chorinho Brasileiro, de Ernesto Nazareth, ou Tico-Tico no fubá de Zequinha Abreu, me lembro que a professora nos acompanhava em seu acordeão! Ainda tive a oportunidade de tirar recentemente a música The Entertainer, do compositor e pianista negro Scott Joplin, considerado o "Rei do ragtime"...enfim, mesmo com algum conhecimento e um gosto peculiar para a música, quando falo sobre a Madonna, a questão é outra, percebe?

Play VideoPlayUnmuteCurrent Time 0:04/Duration 0:30Loaded: 100.00%Fullscreen

Não quero discutir se ela canta bem ou não. Se as músicas são poéticas. Até porque, há artistas brasileiros incríveis como Chico Buarque, Raul Seixas, Luiz Gonzaga, Tim Maia, Rita Lee e Belchior justamente para isso! É um direito não gostar, mas é inegável que a presença da Madonna no Brasil, neste fim de semana, aos 65 anos de idade, cantando e dançando lindamente para mais de 1,6 milhão de pessoas em Copacabana (RJ) em seu show de 40 anos de carreira, abraçada à “nossa” bandeira, foi extremamente icônico e poderoso!!!

Passei o domingo (05) absorta, ouvindo os principais sucessos da diva entre os anos 1980 e 1990. Sei lá, a sensação era de estar sendo exorcizada (vi esse meme e quis repetir). Vocês têm noção que eu era do fã clube da Madonna? Tinha todas as fitas K7, DVD e até VHS com músicas, letras e shows, além de álbuns, cartazes e revistas? Cantava todas as músicas de cor? Fazia aulas de jazz para performar as coreografias? Cresci vendo a Madonna como uma deusa irreverente e corajosa que conquistou sucesso no show business confrontando uma sociedade machista, misógina, pedófila, homofóbica, racista e hipócrita.

“Na minha perspectiva, é hilário ver o “choque” de algumas pessoas com um show performático. Houve sexualização? Sim, houve, a intenção era chocar! Mas, vem cá, existe algo mais antiquado do que se chocar com a Madonna chocando pessoas?”

Claro que na época eu não tinha uma noção exata do que era tudo isso. Imagina, uma garota que estudava em uma escola pública no interior de Mato Grosso. Aliás, só no ano passado, aos 45 anos, quando ingressei no Mestrado da UFMT, e comecei a ler inúmeros escritores/escritoras incríveis (como bell hooks, Djamila Ribeiro, Lélia Gonzáles, Chimamanda Ngozi, Stuart Hall, Silvia Federici etc), passei a ter dimensão da raiz dos problemas enfrentados no Brasil que faz muitos de nós se julgarem “melhores”, “superiores” e “merecedores” de desfrutar o topo da cadeia alimentar (como animais selvagens), em uma hierarquia invisível, porém violenta, entre cidadãos de 1ª grandeza que ditam as regras e que obrigam os demais a obedecer.

Portanto, gostar da Madonna é extremamente simbólico, sobretudo pra mim, que cresci numa cidadezinha que é o umbral da moralidade. Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, até hoje, do ponto de vista sociocultural, ser mulher é muito difícil em qualquer lugar do mundo, ainda mais ser uma mulher em busca de sucesso, poder e riqueza, querendo levar uma vida sem bater continência para uma cartilha absurda que nos diz para fazer e ser tantas coisas desde que nascemos:

Sejam “boas moças”, “não falem palavrão”, “não bebam”, “não usem roupa curta”, “não sentem de perna aberta”, “não contrariem seus maridos” (ou qualquer outro homem ou figura de autoridade), “não sejam putas que gostam de namorar todo mundo”, mas também não sejam “solteironas (felizes)”, “não falem alto”, “não sejam questionadoras e agressivas”, ah, o mais importante, “não tenham autoestima”... Empoderamento e “liberdade” só é válido se isso beneficiar alguém, preferencialmente homens e algumas grandes indústrias (da beleza e da moda por exemplo), que são conduzidas por quem? Homens também.

Afinal, onde está o batom vermelho e o salto alto? Já depilou as pernas, as axilas? Colocou cílios postiços? Fez as sobrancelhas? Encheu o rosto de botox até virar uma andrógina de 60 querendo parecer ter 30 anos? Pintou os cabelos para esconder os brancos e não parecer relaxada? Até a Madonna (maravilhosa!) é obcecada com o envelhecimento, porque para nós, mulheres, até isso, que se trata de um processo natural, é negado. Temos que parecer sempre jovens “donzelas” indefesas e ingênuas que precisam ser salvas por algum homem mediano que se acha o rei da cocada (risos). Vamos combinar de cada uma salvar a si mesma e ninguém mais entrar em relacionamento abusivo!

Na minha perspectiva, é hilário ver o “choque” de algumas pessoas com um show performático. Houve sexualização? Sim, houve, a intenção era chocar! Mas, vem cá, existe algo mais antiquado do que se chocar com a Madonna chocando pessoas? Meu anjo, ela faz isso com a família tradicional brasileira (Nelson Rodrigues que o diga!) desde os anos 1980! Agora, se for para falar de obscenidade, vamos falar sério. “Obsceno e imoral é a fome”, como dizia o brilhante escritor português José Saramago (autor de O ensaio sobre a cegueira, O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim – amei esses três), principalmente em um país que se diz “grande produtor de alimentos”:

Segue a manchete de um tempo atrás: “Fome avança no Brasil em 2022 e atinge 33,1 milhões de pessoas”, segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da rede Penssan, que mostrou que só 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação. Esse relatório apontou que 58,7% da população brasileira enfrentava, naquele período, insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). Isso sim é obsceno.

Obscenas são as manchetes que a gente vê diariamente nas mídias e já nem nos chocam mais: “A cada 24 horas, ao menos oito mulheres são vítimas de violência”, “Pornografia move indústria bilionária que consegue ser invisível”, “Casos de crianças manipuladas para produzir pornografia crescem 65%, diz relatório internacional”, “Mulheres são 96,36% das vítimas de tráfico internacional de pessoas, aponta pesquisa”, “Mais de 70% da violência sexual contra crianças ocorrem dentro de casa”.

A tragédia no Rio Grande do Sul é a ponta o iceberg de uma “boiada” que vem passando ano após ano quase sem mobilização da mídia e da sociedade... porque, normalmente, as pessoas acham o tema “meio ambiente” (digo com conhecimento de causa) chato, prolixo, sem importância e taxam cientistas e técnicos (ainda mais se falarem de mudanças climáticas) de “ecochatos” e “atrapalhadores do progresso”. Obsceno mesmo são essas notícias do ano passado: “Quatro anos da tragédia em Brumadinho: 270 mortes, três desaparecidos e nenhuma punição”; “Caso Mariana faz oito anos sem punições e com crimes prescritos”.

Talvez tenhamos histórias de vida diferentes. Mas sou uma mulher conversadora também, como a grande maioria dos brasileiros. Cristã, batizada e crismada na igreja católica, cuja família de comerciantes e pecuaristas é historicamente de direita, mas, mesmo nascendo em um ambiente inóspito para aqueles que gostariam de desenvolver pensamento crítico e humanista, ainda mais sendo mulher... mesmo em contato com vários tipos de violência... ter acesso à educação (boas escolas e livros) e à Madonna (obrigada, mãe, por nunca me proibir de cultuá-la!) me trouxe até aqui, que é um lugar privilegiado. Eu penso (logo existo). Pausa para risos com esse trocadilho besta.  

Madonna canta, dança e fala em “empoderamento” de uma maneira visceral mesmo quando a palavra nem existia, mesmo quando propagando para o Dia das Mães era sobre eletrodoméstico. Falar da Madonna me emociona e me desperta gatilhos, porque crescer na década de 80/90 é sinônimo de apanhar em todo lugar: na escola, na igreja, na educação física, na rua, em casa. Nós, meninas, éramos "domadas" à base de muita pancada. Mas veja bem, eu não apanhei calada, eu revidei, questionei, infernizei a vida de todos (coitada da minha mãe e das professoras da catequese), e pior, eu estudava. Descobri que ser inteligente era o maior ato de rebeldia para uma menina... 

Então, como me sinto ao ver que os mesmos adultos que dizem que a Madonna é uma “safada” e “put@” são aqueles que nunca moveram um dedo para me proteger de assédios e abusos? Que nunca se mexeram quando a minha mãe ficou viúva, com duas filhas pequenas e tão assustada que se casou com o primeiro que apareceu e ofereceu ajuda (mas era um homem extremamente violento)? Que nunca se importaram quando eu chegava chorando (quase diariamente) na escola? Alguma vez se perguntaram por quê? Quiseram me ajudar? Ajudar a minha mãe, minha família que era vítima de violência? Quem é essa gente hipócrita que tem coragem de apontar o dedo para a Madonna mesmo deixando suas crianças e mulheres serem abusadas e violadas? Que inclusive defendem a educação tradicional extremamente violenta e machista, que é uma porta aberta para estupros e até incestos? Isso sim ainda me choca. Isso sim é obsceno. Tomem vergonha nas suas caras! Deixem a Madonna em paz! 

Rose Domingues é jornalista, escritora e mestranda em Comunicação