Pantanal:O último índio Guató
Por Rodrigo Vargas/Diário de Cuiabá
22/09/2013 - 08:40
Cacique de si mesmo, um dos últimos falantes do idioma Guató passa seus dias na companhia de um pequeno exército de cães e gatos, a remoer as lembranças de um tempo em que seu povo se espalhava sem limites pelos confins do Pantanal.
"Deve ter algum parente esparramado, perdido por aí, mas neste pedacinho sou só eu", afirma Vicente da Silva, índio de 67 anos que mora em um casebre de adobe, madeira e palha, em uma barranca de rio na divisa entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Até 2006, quando morreu o tio, Veridiano, havia três moradores por lá. No ano passado, uma grave pneumonia levou a mãe, Júlia, aos 105 anos. "Tentaram de tudo, levaram ela para Corumbá, mas não teve jeito. Trouxe o corpo para cá e enterrei aqui mesmo", diz.
Conhecidos como os "índios canoeiros", pela rara habilidade em construir e manejar embarcações pelos labirintos hídricos da região, os Guató chegaram a ser considerados extintos entre as décadas de 1950 e 1970.
Dispersos pelas cidades e fazendas de gado do Pantanal, os remanescentes da etnia só foram redescobertos a partir de 1976, em um processo que culminou no reconhecimento de uma terra indígena na chamada Ilha Ínsua, com 10,9 mil hectares, onde vivem cerca de 200 índios.
A família de Vicente, porém, nunca aceitou a possibilidade de mudança para a área demarcada. Diferentemente de outros grupos indígenas, explica ele, os Guató não se organizavam em aldeias.
"Guató nunca teve aldeia não. Era só morador da beira de rio mesmo. Um aqui. Outro acolá. Não ficava reunido. Era longe de um a outro. O dia em que um queria dar um passeio era de canoa, passava o dia visitando e voltava para casa", lembra.
O índio diz que nunca mais foi à ilha desde a demarcação e que não gosta de lá. O motivo, segundo ele, é a inexistência de Guatós que chama de "legítimos".
"Lá não tem índio. Só boliviano e paraguaio. Só fala que é Guató, que é índio, mas não é. Finado meu tio foi lá para ver se tinha, mas não viu índio Guató por lá. Então não serve", declara.
À companhia dos que não reconhece como "parentes", ele acabou por se cercar de um ruidoso grupo que, embora já tenha sido muito maior em outros tempos, ainda impressiona quem o visita: três cães e quase trinta gatos.
Uma multidão de olhos curiosos e famintos, que começou a ser formada por acaso. "O primeiro fugiu de uma lancha que parou aqui. O gato desceu e o dono não viu. Aí ficou. Depois um vizinho trouxe uma gata que deu cria e foi só aumentando. Tenho dó de matar os filhotinhos".
Para se manter, e cuidar de seus bichos, Vicente se vale principalmente da pesca e de uma roça onde planta mandioca e banana. Um vizinho conta que, em tempos de pouco peixe, o índio chega a ficar sem comer para ter com o que alimentar seus bichos.
"Hoje em dia, o peixe é pouco, porque tem pescador e turista demais. Antes, quando nem pescador não tinha, o final da tarde era só barulho de peixe nesta beira de rio. Agora sobrou só um pouquinho", lamenta.
Arrumar o que comer, porém, não é a única preocupação. Somente neste ano, conta ele, três de seus gatos foram comidos por onças, que frequentemente vêm vasculhar o seu quintal quando anoitece.
"Ela sai na beira do rio e anda por aí, passa e encosta na minha parede. Faz barulho e fica rodeando. Por isso que os bichos dormem lá dentro comigo. Por causa da onça. Eu ponho um restinho de comida e eles vão lá dentro, cachorro, gato e tudo".
Quebrar a rotina solitária exige preparo físico. A comunidade mais próxima, à beira do rio Paraguai, fica a quase duas horas de remo. "Daqui para lá é descida e vai mais fácil. Na volta, de subida, custa mais, por que é contra."
Tímido, diz que procura uma companheira, mas admite ser difícil encontrar quem se disponha a compartilhar seu modo de viver. "Eu fico pensando, onde será que vou arrumar? Sozinho direto assim, não dá não."