Partir a caminhar, sozinho, apesar de estar em multidão, é muitíssimo interessante. Observar pessoas, comportamentos, de um ângulo a tornar-te invisível, indevassável, e, ao mesmo tempo, reflexivo. Façam a experiência, vale a pena; e observa, apenas observa.
A espreita reflexiva não precisa ser na rua, pode contemplar a complexidade humana em seu ambiente de trabalho, na escola ou mesmo na igreja. Se tomar a paciência como amiga, realiza-a em sua família, também.
São tesouros em ilações a ser guardados; teorias explicativas surgirão como mágicas a anuviar a tensão da vida em sociedade e suas implicações.
Desde a omissão relevante, como a um grito sem som, conviverás, sem, contudo, estar diretamente envolvido, com todo tipo de comportamento, gesto, aceno, cumprimento, cara feia, cara de pau, bondade e até crueldade.
Sim, somos capazes de muitas coisas, delas dizem que até Deus duvida.
Sem separar inocentes de culpados, engalfinhamos em relações lógicas de estar e avançar como num feixe cuidadosamente desenhado pela condição humana.
"A espreita reflexiva não precisa ser na rua, pode contemplar a complexidade humana em seu ambiente de trabalho, na escola ou mesmo na igreja."
Gente de cara amarrada, doída pelo sorriso inexistente, convive ’male má’ com os de fala e cumprimento afáveis, o de humilde vestir com os de gala na aparência, os mancos com os de porte atlético, os letrados e os analfabetos em inovadora semiótica comunicativa de fazer inveja ao cinema mudo.
Numa dessas espreitas reflexivas, aproximei, mas sem me deixar notar, de duas distintas senhoras, bem vestidas e bem maquiadas. A reclamação como ponto de interação e convergência entre ambas, ao menos naquele momento, se dirigia à segurança pública.
O aumento do crime de furto e roubo dominava a atenção. Após discorrerem sobre prisão ’para toda a vida’ e ’pena de morte’, e talvez sumirem com boa parte dos brasileiros ditos delinquentes, ambas se despediram marcando um encontro para o domingo próximo, na igreja.
Minutos depois, continuando minha vontade extrema em socorrer-me a inquietação, acheguei a dois senhores, também bem vestidos, aparentando sexagenários. A conversa girava num mesclar de futebol, política e economia.
Após cansarem de bater e derrubar pelo menos dez clubes e cinquenta autoridades,concluíram que o melhor é deixar a política de lado e contratar bons contadores para suas empresas, mesmo porque os dentes da receita federal e estadual estavam afiados e precisavam dar um jeito de enganar o leão.
Também se despediram e, em juras de um breve reencontro, o marcaram para a missa de domingo.
Achei sintomático, a casa de Nosso Senhor? Mas fui em frente e reiniciei a busca por conhecimento popular, me aproximando de dois jovens.
Da mesma forma, após arrotarem desilusões e que ’bandido bom é bandido morto’, além de outras impublicáveis pérolas, se despediram com um ’vai com Deus’.
Comecei a pensar num grande espetáculo,/De sôfregos em retirada/Forças densas pensadas/Acompanhavam a togada/De pau em riste, ou pedra de brita/No caminho, sempre um obstáculo persiste/Retirar-se ou retirar, ação nos opostos/Punho contraposto, quê da mesmice/Que fazer... Engalfinha, persiste/Decantando a maldição de um sofrer que não disse/Mas em pensamento existe./Tempo a tanto amargurar,/A represa extravasa, o ressentimento vaza/Chora e expulsa, chega à crise/Um nascer, no pensamento não existe/Mas é real e subsiste/Pesar de quem só assiste/Omissão da patuleia,/Deus existe?
GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO é professor universitário, magistrado, membro fundador da Associação Poetas Del Mundo, cronista.
antunesdebarros@hotmail.com