Apesar de ser tombado pela União como patrimônio cultural e maior até que o centro histórico da capital Cuiabá, o conjunto arquitetônico histórico de Cáceres (a 220 km de Cuiabá), uma das mais antigas cidades de Mato Grosso, atualmente está “orfão de três pais”, comprometido pela poluição visual, abandonado ou em risco de sofrer processo de depredação irreversível.
A avaliação está em uma notificação expedida no início de abril pelo Ministério Público Federal (MPF) ao município, ao governo do estado e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) cobrando atuação conjunta em socorro ao patrimônio da cidade, fundada no século XVIII tal como a capital.
“Verifica-se que atualmente o patrimônio cultural de Cáceres, notadamente em sua feição material, tornou-se um órfão de três pais, abandonado pelo município de Cáceres, estado de Mato Grosso e Iphan. Os três entes não desenvolvem praticamente nenhuma ação efetiva de defesa, valorização e promoção de bens culturais protegidos, quanto mais a indispensável política pública integrada de gestão (…) Nenhum deles aparenta demonstrar interesse em tratar a matéria com a dedicação e profissionalismo exigidos”, criticou o procurador da República Felipe Mascarelli.
Segundo a notificação, atualmente inexiste “política pública mínima que atenda aos deveres de preservação e proteção do conjunto tombado de Cáceres”. Expedida no dia 5 de abril após a condução de um inquérito civil, a recomendação do MPF é para que, dentro de 120 dias, município, estado e Iphan produzam um diagnóstico e um plano de atuação conjunta para recuperação, manutenção, preservação e gestão compartilhada do conjunto arquitetônico e paisagístico tombado há cerca de seis anos em Cáceres.
Patrimônio abandonado
Tão antiga quanto Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade (a 562 km da capital), Cáceres foi fundada a mando de Luís de Albuquerque, oficial designado pela Coroa de Portugal para governar a então capitania de Mato Grosso, região de tensão com a Coroa Espanhola e, por isso, de fundamental importância para o processo de consolidação da fronteira da colônia portuguesa. Albuquerque determinou a fundação da vila que deu origem a Cáceres em 1778, com o nome de Vila Maria do Paraguai, elevada à categoria de cidade em 1874.
Com passado colonial, a cidade reuniu em seu conjunto arquitetônico um acervo diferenciado que acabou sendo tombado pela União como parte do patrimônio histórico-cultural brasileiro. Entretanto, segundo o procurador Mascarelli, do MPF, o tombamento não foi acompanhado por medidas que efetivamente garantissem a preservação e a gestão do conjunto em questão.
Exemplo disso é o estado do prédio da antiga sede do governo municipal de Cáceres, que chegou a ser utilizado para abrigar uma biblioteca. Em sua notificação recomendatória, o MPF relatou os estragos causados por um incêndio ocorrido à época do aniversário de 237 anos da cidade, em 2010.
“Não há melhor figura para a representar a atual situação a que foi relegado, pelos poderes públicos (...), o conjunto arquitetônico e urbanístico de Cáceres”, critica o texto, lembrando que o município tinha, naquele ano, cerca de R$ 1 milhão disponível para reforma do prédio.
Outros exemplos podem ser conferidos ao se circular pela cidade, com casarões do início do século passado dentro da área do centro histórico tombado em estado não só de abandono, mas depredados, pichados, com marcas de incêndio ou afetados pela poluição visual da cidade. Há situações de casas do centro histórico habitadas ou preservadas – como o prédio da Câmara Municipal - mas a maioria é de estruturas sob ameaça de perderem os atributos que embasaram o tombamento pelo patrimônio nacional há cerca de seis anos.
Notificação recomendatória
De acordo com Mascarelli, ao longo de 2015 o MPF buscou iniciativas junto ao poder público para que fosse estabelecida uma forma de gestão do patrimônio histórico, mas sem efeito prático, motivo pelo qual o procurador optou por expedir a notificação recomendatória ao município, ao estado e ao Iphan. Segundo ele, infelizmente o poder público passou a tratar o tombamento como um fim e não como um meio para se assegurar a preservação do patrimônio.
Dentre as iniciativas que o MPF cobra do Poder Executivo nas três esferas não está só a recuperação do conjunto arquitetônico, mas a gestão do patrimônio de forma a fomentar a cultura, o turismo e a economia local. Segundo Mascarelli, o intuito é se opor à noção arraigada de que o "tombamento impede o progresso de Cáceres". Ele lembrou do exemplo da "cidade-irmã" Corumbá, em Mato Grosso do Sul; com origem semelhante à de Cáceres, Corumbá conseguiu se consolidar como cidade histórica e turística no estado vizinho, recebendo recursos do PAC Cidades Históricas, do governo federal (o que não ocorreu em Cáceres).
"Como não há uma política desenvolvida sobre o patrimônio histórico, fica tudo à mercê. Parece que nunca houve essa discussão aqui em Cáceres, mas quem tem que desenvolver isso é o Poder Executivo, ele que tem que apresentar alguma proposta, algum cronograma", criticou o procurador.
Na notificação expedida ao município, ao estado e ao Iphan, o procurador cobrou a formação de um grupo de trabalho para criar uma política de gestão do patrimônio tombado em Cáceres e apresentar uma proposta de medidas sobre o tema. Também foram expedidos ofícios dando ciência da situação a entidades como as universidades estadual de Mato Grosso (Unemat) e federal de Mato Grosso (UFMT), ao Sebrae e ao Conselho Municipal de Turismo de Cáceres, entre outros.
O secretário municipal de Esporte, Cultura e Lazer, Jair Céstari, explicou que a prefeitura já recebeu a notificação recomendatória do MPF e que o município está trabalhando para atender o pedido. Ele afirmou que uma reunião envolvendo Iphan, MPF, prefeitura e membros da sociedade civil foi realizada na última semana e que a principal pauta foi a situação do conjunto arquitetônico histórico da cidade.
Céstari comentou, porém, que a cidade busca auxílio financeiro com o governo estadual porque “a captação de recursos tem sido uma tarefa difícil para a prefeitura”. O secretário disse ainda que uma comissão especial deve ser montada para lidar dessa questão. Ele afirmou que por enquanto não lida com prazos já que “esses trabalhos dependem de muita vertentes”.
A reportagem procurou as assessorias de imprensa da Prefeitura de Cáceres e do governo estadual, bem como a superintendência regional do Iphan em Mato Grosso para comentar a notificação do MPF, mas não obteve retornos.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou já ter sido notificado da expedição feita pelo Ministério Público Federal e vai responder dentro do prazo estipulado. Quanto aos demais questionamentos, alegou, em nota, que não comenta casos que sejam objeto de recomendação expedida pelo Ministério Público ou que estejam em andamento na esfera judicial.
"O Iphan trabalha pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro há quase 80 anos, envidando todos os esforços para proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Isso inclui o Centro Histórico de Cáceres", diz a nota.