Diario de Cáceres | Compromisso com a informação
Cáceres 1968
Por por Thaelman de Almeida
16/12/2012 - 10:52

Logo que meu pai chegou da China, no início do ano de 1967, teve como tarefa partidária (na época militava nas fileiras do PC do B, ao lado de Maurício Grabois, Carlos Danielli, João Amazonas, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar), teve como tarefa implantar bases de apoio à luta contra a ditadura no Mato Grosso. A região abrangia Campo Grande, Aquidauana, Cuiabá, Cáceres e Rondonópolis. Circundando o mapa do Brasil e juntando ao Araguaia, Brasília ficava no centro, era o “cerco da cidade pelo campo”, que formava ali. Meu pai viajou antes de nós com o camarada “Agostinho”, que não sei seu nome verdadeiro, sei que ele se instalou na gleba Salto do Céu. As glebas eram terras distribuídas pelo governo da ditadura para a colonização da região. Saindo de Votuporanga, eu, minha irmã e minha mãe, passamos por Penapólis onde meu primo Álvaro, que era professor e diretor escolar, auxiliou-nos com a documentação da transferência escolar para que pudéssemos continuar nossos estudos, a salvo da perseguição política, que sofríamos, por conta da viagem à China e das tarefas partidárias de meu pai. Dali seguimos para Campo Grande, onde ficamos uns dias e minha mãe fez alguns contatos e recebia orientações, depois brevemente por Cuiabá e finalmente desembarcamos em São Luis de Cáceres, sob o seu sol forte, quente e escaldante. Hospedamo-nos em um hotel simples, próximo de onde desembarcamos do ônibus, que nos levou. Uma velha senhora de traços firmes nos recepcionou, ofereceu-nos banho e nosso primeiro almoço na cidade. O prato farto com arroz, feijão, bife de carne de vaca sem conservantes (com sabor diferente do que estava acostumado), banana da terra frita e salada. Passamos uns dias nesse hotel e logo encontramo-nos com meu pai, que tinha alugado um quarto, não me lembro de qual bairro, mas não tão distante do centro. Moramos ali por um mês. Nossa mudança ainda não tinha chegado. Dormíamos no chão e minha mãe providenciou um fogãozinho jacaré (de acampamento) onde fazia café e preparava comidas básicas. Na frente, numa sequência de casas ajuntadas morava um rapaz gordo, um tenor, que vivia cantado e os vizinhos se aproximavam para ouvi-lo e assim fomos conhecendo a população local que nos contavam histórias da cidade, algumas surreais e fantásticas. Como a de um velho, que era perseguido, se escondia nas matas dos arredores e ninguém nunca o encontrava. O dono desse quarto, um velho bugre, ás vezes bebia a mais e brigava com a mulher. De nosso quarto ouvíamos as discussões e lembro-me de minha mãe ás vezes intercedendo e ás vezes contendo-se para não confrontá-lo. Sua mulher sempre chamava-nos para ficar na casa com ela, pois na nossa presença, ele não a agredia. Minha mãe, atuante na causa das mulheres, conversava com ela para não aceitar aquela situação. Moramos ali pelo menos um mês. Eu e minha irmã já frequentávamos escola, quando mudamo-nos para o bairro Cavalhada. Um casarão, com pé direito alto. Na escola, fiquei amigo de Roberto, o dirigente da fanfarra da escola onde eu queria tocar caixa e como não conseguia fazer a batida no compasso certo, fui tocar meio-surdo. Ele também era locutor na rádio da cidade e com sua bicicleta passava em casa para me pegar e levar para auxiliá-lo na sonoplastia da rádio. Atendia telefonemas de ouvintes e manipulávamos os discos na vitrola. Raras vezes, ele abria o microfone para eu falar. Divertíamo-nos. Apresentava-me às garotas, que ás vezes iam até o estúdio para conhecer-nos. Quando chegou o disco Roberto Carlos Em Ritmo de Aventura, foi sucesso total. Imbatível. Atendendo pedidos repetíamos inúmeras vezes, todas as faixas do disco. Numa festa em clube da cidade, onde garotas desfilavam caracterizadas por cada Estado do Brasil, minha irmã desfilou representando o Paraná, a caráter. Mudamo-nos para mais próximo do centro, onde a foto acima foi tirada. Na mesma rua morava a família Montecchi, de quem tornamo-nos amigos. “Airtinho” namorou minha irmã. Íamos juntos ao cinema. Eu os policiava... Tinham um grande armazém na rua e em frente um largo onde jogava futebol com os garotos da cidade. Certa vez, quando a ditadura começou a perseguir o ex-presidente Jânio Quadros, chegando a prendê-lo em Corumbá, seu Airton Montecchi ex-prefeito de Cáceres, esteve em casa conversando durante horas com meu pai. Embora mantendo as diferenças ideológicas, eram aliados contra os desmandos e abusos, que a ditadura militar vinha praticando contra a população em geral. Ao lado direito de nossa casa: “seo” “Laércio” e seu empório, do lado esquerdo o “Juca”, funcionário do Banco do Brasil, mais adiante o professor de educação física, acho que Rui ou Raul, também era árbitro de futebol e sua esposa professora. Meu pai tinha tirado documentos para a sobrevivência na clandestinidade, assim que chegou ao Brasil. Usava o nome de Anísio dos Santos Silveira e sua profissão era de mascate, vendedor de miudezas em geral. Era um modo de justificar sua circulação pela região aproximando-se mais dos moradores. Com seu Laerte e sua pick-up Willis viajávamos pelas glebas Rio Branco, até Salto do Céu. Nessas viagens aprendi a dirigir, comi carne de paca, anta e via tatus cruzando a estrada, dormi em rede ao lado de garimpeiros. Eram horas e horas de estrada até chegar a uma casa habitada, gleba ou vilarejo. Íamos e voltávamos à Cáceres, cada viagem, uma aventura para mim. Meu pai fazia seus contatos políticos sem que fosse percebido. A foto publicada no nº 7 da Revista Veja, em Outubro de 1968, que trazia na capa Jaqueline Kennedy e uma reportagem intitulada "Terror e reação" antecedendo a promulgação do AI-5 e preparando a pior fase da ditadura civil-burguesa-militar, chegou à Cáceres desvendando a identidade clandestina “Anísio dos Santos Silveira” e perseguidos obrigou-nos a sair da cidade. Surpreendendo-nos em casa, um dia, a mulher de seu “Laércio” entrou em casa com uma revista Veja nas mãos, exibindo uma foto publicada e perguntando à minha mãe se aquele não “seu Anísio”, minha mãe respondeu que era apenas alguém muito parecido e rapidamente desconversou. Era o sinal. Alguma coisa estava acontecendo. Simultaneamente, minha irmã recebeu um aviso de um filho do cel. Gualter Ferreira dos Santos, comandante do batalhão de fronteira instalado da cidade, que havia homens de fora da cidade procurando por meu pai. Eram do SNI, serviço nacional de informação, o SS da ditadura. O comandante local procurou ganhar tempo resistindo e até confrontando com o autoritarismo que agiam os homens da repressão com quem não concordasse com seus métodos passando por cima do poder local. Foi o tempo de abandonarmos nossa casa, com móveis e objetos pessoais dentro. Mais uma vez a ditadura separava-nos: minha mãe, irmã e eu de meu pai, da cidade que já estávamos integrados. Antes de sair, ainda me lembro de ter ido fazer um exame de admissão. Tinha ficado de segunda época em matemática. O professor e diretor do colégio aplicou-me a prova comigo sozinho na classe. Quando respondi a questão que atingia a pontuação para passar de ano com meio ponto a mais, liberou-me. Voltei para casa e dali partimos em seguida, para Cuiabá, onde minha irmã fez um contato com um camarada na rodoviária, por orientação de meu pai, dormimos em um hotel, voltamos por Campo Grande e de trem para Penapólis, onde além de meu primo Álvaro morava minha tia Maria, sua mãe e finalmente, São Paulo onde ficamos na casa de minha tia Glaucia (irmã mais velha de minha mãe), em Pirituba. Interrompida contra nossa vontade, nossa vida em Cáceres ficava para trás. As paqueras, dias de sol ardente, calor, viagens, os amigos e amigas dizendo “vôti”, que logo assimilamos e tanto rimos quando minha mãe também falava. As músicas (Coração de Papel de Sérgio Reis, os Incríveis, Beatles, Rolling Stones e Roberto Carlos), a escola, os desfiles escolares, o futebol na areia, as bicicletas, a praia, banhos e navegação pelo Rio Paraguai. Os sonhos realizados. Soube que depois que saímos à repressão invadiu nossa casa e interrogaram alguns moradores da cidade buscando informações sobre nós e meu pai. Quando meu pai foi sequestrado pelos homens do DOI/CODI/SP em 1971, mais uma vez Cáceres e sua gente esteve presente em nossas vidas. O velho coronel e um tio meu, que era PM, intercederam por meu pai mudando o destino que teria nas torturas sofridas nos porões. E escoltado por homens da repressão meu pai esteve lá e em toda região, que militou, buscavam revolucionários e guerrilheiros, mas quando saímos de lá todos souberam e já tinham debandado, nenhum foi preso. O trabalho de base não se perdeu. Encontramos com amigos de lá em São Paulo, o Juca do BB, que veio para São Paulo, logo depois de nós. Estivemos uma vez em sua casa no Brás. O Zeno, Paulinho e dona Joanita de Aquidauana. O Guapo e o Tonico, que nos reencontramos na década de 70 e sempre nos vemos e nos falamos. Desde de esses acontecimentos é pela primeira vez que retorno à Cáceres. Para rever velhos amigos conhecidos no 1º Encontro dos Amigos da Princesinha e conhecer novos. Com emoção e vibração sem medidas. A ditadura caiu, nossa vida mudou, mas as amizades, as memórias que fazem nossa identidade, jamais se apagam de nossos corações cacerenses, brasileiros, universais. *o autor é jornalista em São Paulo
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