Ano 1975. Absoluto e silencioso o rio Paraguai passa ficando, escondido pela escuridão, que alguns fachos das lâmpadas na calçada teimam em iluminar resultando num lusco-fusco artificial que não quebra a paz do curso do grande formador do Pantanal em Cáceres, seu ponto navegável mais ao norte de Nueva Palmira.
A calçada iluminada pelas lâmpadas, bem ao lado do Bar do Mendo, perto da Praça Barão do Rio Branco, ouve acaloradas falas convergentes carregadas de bairrismo, bem ao estilo Filhos da Terra de Albuquerque, com todos – inclusive o garçom, enquanto serve à mesa – se desmanchando em amor pela cidade à espera do bicentenário que aconteceria três anos depois.
Não há Unemat, nem mesmo seu embrião, o Instituto de Ensino Superior de Cáceres (IESC), está nos planos da paixão universitária cacerense. Acesso pavimentado, nem pensar; no ‘inverno’, com as águas altas, o Sangradouro cobre a estrada (BR-070) na fazenda do Dr. Hélio Ponce de Arruda e a alternativa é por Barra do Bugres, para se chegar a Cuiabá. Na direita do Paraguai apenas uma cidade, Matto Grosso, que antes se chamava e depois voltou à antiga denominação de Vila Bela da Santíssima Trindade; as demais povoações, Mirassol, Rio Branco, Araputanga, Jauru etc. são chamadas simplesmente deglebas. Telefonia mais próxima: Cuiabá ou Padronal, perto de Vilhena.
Nas ruas planas e estreitas o pedalar das bicicletas é uma das marcas locais. Em suas placas de identificação, nomes que remetem à história: Tapagem, Dr. Sabino Vieira. Nesses mesmos caminhos o vaivém dos recém-chegados ao município carrega sonhos de uma vida melhor do que aquela que viviam em seus lugares de origem.
A humilde Pensão Coleta transborda de tanta gente. Colchões jogados ao chão em improvisados biongos de pano atestam a taxa de ocupação dos leitos. Gente chegando e gente na estrada, pra chegar. À porta do Supermercado Miura o pessoal das glebas bota a conversa em dia; um grupo mineiro costuma prosear na Casa do Arame. Com um inseparável cigarro apagado,Hugolino Corbelino percorre a estreita calçada da Coronel Faria entre o armazém do Manoel Português e a Casa RAU, doKassem Mohamad Fares. Quem passa pelo local no final da manhã e começo da tarde sente o cheiro bom de comida caseira que sai do fogão da Branca Garcia, dona do Restaurante Aquele Abraço.
Cidade acolhedora, Cáceres é uma esquina do mundo com suas colônias árabe, japonesa, boliviana e espanhola (Viva os irmãos Castrillon!). A vida é associada ao rio. Para demonstrar afeto, o cacerense chama o conhecido a quem quer bem, de ‘meu peixe’. Minha mãe – dona Filhinha, não mais entre nós -, mineira, de região amorrada e com pouca água, pesca lambaris no Paraguai perto do cais e se desmancha pela beleza do grande rio que desce do Chapadão do Parecis para integrar cinco países.
Lindas meninas com shortinhos colados. Dificilmente se vê tantas mulher arrasa-quarteirão como em Cáceres. Viajantes se apaixonam e muitos são fisgados pela beleza cacerense.
O aeroporto Nelson Martins Dantas é quase deserto. Todas as quartas o turboélice Avro do Transporte Aéreo Militar (TAM) pousa em San Matias, Bolívia. Irmãos dos dois lados da fronteira fazem o vaivém em paz. Do nosso lado destacamentos do 2º Batalhão de Fronteira do Exército palmilham todos os cantos em Corixa, Santa Rita, Casalvasco, Palmarito etc. Na ponte sobre o Paraguai, uma barreira do Exército monitora tudo. A paz é visível, palpável.
O bingo é proibido, mas com o jeitinho brasileiro a concessionária Ford encontra uma saída e o realiza em San Matias, cujo acesso não é pavimentado. Nas tardes de domingo o estádio Geraldão pega fogo.
Cocaína não é palavra do dicionário cacerense. Nas mesas do Bar do Mendo o sonho com a grande Cáceres é interrompido com o apagar das luzes alertando que em cinco minutos o motor estacionário da cidade – o Monteirão – será desligado. Entre apressados goles da saideira fregueses sonham com o amanhã.
O bicentenário chegou festivo em 6 de outubro de 1978, encontrou a cidade melhor estruturada e no caminho certo ao amanhã, com o Marco do Jauru, a Catedral São Luiz e as águas do Paraguai por testemunhas.
A extensão territorial era descomunal: 85.783 km² e a cada município desmembrado encolheu até chegar aos 24.593 km² de agora – área maior que Sergipe – 21.918 km². Os números da população do ontem eram ancorados no chutômetro se comparados com a exatidão da estimativa atual, de 91.171 cidadãos, com base em parâmetros confiáveis do IBGE.
Pena que a droga e seus tentáculos violentaram a alma cacerense num avanço que atesta a ausência do Estado na fronteira e fora dela.
Pena que a visão obtusa do governo federal criou assentamentos da reforma agrária na região do Limão, a um passo da fronteira, levando pra aquela área, centenas de jovens desguarnecidos socialmente e presas fáceis do narcotráfico para atuarem como ‘mulas’.
Pena que tantas e tantas bolivianas miseráveis socialmente estejam encarceradas em Cáceres por crimes transnacionais na esfera das drogas.
Pena que o Brasil teime em permanecer de costas para a Bolívia, inclusive nos 983 quilômetros da fronteira em Cáceres, Poconé, Porto Esperidião, Vila Bela da Santíssima Trindade e Comodoro.
Pena que durante décadas a verdadeira Hidrovia do Mercosul, com 3.442 quilômetros, foi mantida satanizada em seu trecho brasileiro.
Pena que a ZPE tenha sido jogada debaixo do tapete por tanto tempo.
Pena que o gás boliviano que entra em Mato Grosso por Cáceres ainda não abastece a frota cacerense e regional com esse combustível limpo.
A um passo do adeus ao jornalismo e já saudosista, junto a esse sentimento o de amor a Cáceres, a cidade que sonhava numa época em que a inexistência da droga permitia sonhar e que tantos erros conceituais e políticos ainda não atingiam aquele que é o melhor lugar do mundo.
Eduardo Gomes de Andrade é jornalista