Lançada como um grito por Bento XVI ao visitar o campo de extermínio de Auschwitz em 2006, a pergunta ecoa 15 anos mais tarde diante dessa versão moderna da peste representada pela covid-19. Onde estava Deus quando permitiu o surgimento desse vírus que mata, enferma, esgota recursos materiais e financeiros, fecha igrejas, destrói empregos, joga bilhões de homens livres em prisão domiciliar? Lembro que a pergunta profundamente humana de Bento XVI foi estampada em todos os jornais e replicada em todos os idiomas. Causava certo desconforto, espécie de cheque mate teológico aplicado às pessoas de fé. Até, claro, pararmos para pensar.
Bento XVI é um ser humano sujeito às nossas mesmas angústias e inquietudes. Ele não fala com Deus todos os dias através do celular. Quem ainda não se interrogou sobre o silêncio de Deus? Quem, perante a dor, o sofrimento e a aflição, já não clamou pela interferência direta do Altíssimo?
O paciente Jó, sofredor sempre fiel, nos fornece antigo exemplo bíblico desses brados da nossa débil natureza, que soam e ressoam através das gerações. A manifestação de Bento XVI, que ele mesmo chamou de grito da humanidade, foi humilde e reiterada expressão dessa mesma humanidade. Nem mesmo Jesus escapou a tão inevitável contingência: “Pai! Por que me abandonaste?”.
É fácil imaginar, igualmente, a presença divina atuando nos incontáveis gestos de solidariedade que, por certo, ocorrem em situações assim. Ativo no coração dos que o amam, ali age o Deus de todas as vítimas, consolo dos que sofrem, esperança dos aflitos e destino final dos seus filhos. Age entre os que rezam pelo fim da pandemia e entre os cientistas que escrutinam o vírus. Age nas equipes de saúde, e quando os braços, ali, querem tombar de cansaço e desânimo. Age entre os que consolam quantos perderam entes queridos. Age entre os incontáveis atos de assistência às famílias de doentes e desempregados. Age no heroico empenho de tantos empreendedores para manter suas empresas e seus postos de trabalho.
A nós, claro, pareceria mais proveitoso um Deus que atuasse como gerente supremo dos eventos humanos, intervindo para evitar quaisquer males, retificando a imprudência dos homens, proclamando verdades cotidianas em dizeres escritos com as nuvens do céu, fazendo o bem que não fazemos, a todos santificando por ação de seu querer e pela impossibilidade do erro e do pecado.
Nesse paraíso terrestre, nada seria como é e nós não seríamos como somos. Não haveria cruz, nem Cristo. Não haveria lágrimas, nem dor. Tampouco morte, ou vida. É o imenso respeito divino à nossa liberdade que configura a existência humana como tal e nos concede o direito de bradar aos céus. No entanto, tão rapidamente quanto Deus nos ouve, ouve-nos nosso próprio coração.
Aprendamos com as lições da história, da ciência, da razão, do amor e da prudência. Aprendamos com o que acontece quando o materialismo, o relativismo e os totalitarismos, frios como aço, investem na concretização de seus projetos de poder. Eles jamais abandonam o tabuleiro das opções e seus males sempre se fazem sentir.
Percival Puggina é escritor e empresário