Mais um 18 de maio se aproxima. O tema do abuso sexual de crianças e adolescentes volta à mídia, proliferam palestras, entrevistas, reportagens, lives, dentre outros eventos. Às vezes dá a impressão que se trata de mais uma campanha, mais um falatório temático, afinal temos um dia específico no calendário brasileiro para marcar a data.
Antes fosse desnecessário falar sobre abuso sexual. Ao contrário, torna-se cada vez mais essencial insistir e insistir. Falar sobre é a nossa maior força, falar sobre é o que mais podemos fazer, falar cura. Cura a ignorância e ilumina o assunto, faz com que saiamos da esfera das crendices e mitos e entramos na esfera da complexidade do fenômeno da violência. A violência é o pano de fundo do abuso sexual, traz ao debate as relações de poder entre adultos e crianças.
Os números de casos de abuso, violência e exploração de crianças estão escancarando ainda mais o tamanho da triste realidade no Brasil. E se está exposto, nós precisamos nomear este problema. Só resolvemos algo se a gente nomina; se a gente diz: ‘’qual é o nome daquele problema e como posso resolver aquela situação?’’ Se continuarmos guardando as coisas, fingindo que não há problema, se continuarmos negando a gravidade, a causa e a consequência dessa questão, os casos continuarão acontecendo e os números aumentando. Só resolvemos algo quando encaramo-lo de frente.
Abuso sexual de criança e adolescente é considerado um problema social e de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS), desde a década de 1990. O abusador se aproveita sempre do papel de autoridade que tem, usa de força física e de ameaças para seduzir e convencer a criança e ao adolescente a lhe atender; aproveita também da intimidade e da liberdade que tem com a vítima; usa de mecanismos de sedução e aproveita a relação de confiança que exerce com a criança.
Se todas as pesquisas comprovam, há muito tempo, que o maior número dos abusadores são pessoas conhecidas da criança. Se sabemos que os abusadores sempre estão em uma relação de poder com a criança, por que nos esquivamos de falar sobre valores dos quais nossa sociedade foi constituída, por exemplo? Por que temos dificuldade de dar nome aos problemas sociais? Por que evitamos de ver as causas que constroem, produzem e fomentam os abusos e violências de crianças e adolescentes? Por que não olhamos para a forma como as meninas e os meninos são educados em nossa sociedade?
São muitas as perguntas e não há respostas prontas, pois, problemas complexos exigem que olhemos para as causas, para a raiz da questão que é muito melindrosa e delicada. Para essa temática há muitos conflitos estruturais, culturais e sociais. Não há um recurso, um instrumento, ou uma única forma de enfrentar e eliminar esse problema que acontece em grande parte dentro da casa das vítimas.
O machismo dá o tom às violências e ao abuso sexual de forma estrutural no Brasil. Está tão naturalizado no dia a dia, que nem sempre se percebe. Ainda é muito comum a repetição de jargões machistas e sexistas, na educação de crianças, como as ditas para as meninas "tem que dar o respeito", "sente que nem mocinha", "ele puxou seu cabelo, deve estar apaixonado por você", "você não pode, porque é menina", “isso é brincadeira de menino”, “já pode casar”, “se continuar assim, vai ficar pra titia”, “menina não fala palavrão”.
Para os meninos, ainda ouvimos as frases: “seja homem”, “você tem que ser forte, já é o homem da casa”, “cadê as namoradinhas”, “quantas você já beijou na escola”, esse vai ser pegador”, “esse vai arrasar corações”, “trabalho doméstico não é para homem”, “na sua idade eu já tinha pego todas as meninas da roda”, “quanta moleza, rapaz não chora”, “liga não, se essa não te quer, ali na esquina tem outra”, “homem que é homem fala palavrão”, “se ela der em cima, vai pra cima”, “tá na hora de você aprender como que vira garanhão”.
Essas e outras frases, ditas muitas vezes em tom de brincadeiras, ou de piadas, já foram ditas e continuam sendo reverberadas. Mas não é porque elas sempre foram usadas que tem que continuar sendo repetidas. Cada uma delas carregam significados, símbolos e ressonâncias na vida em sociedade e reproduzem a cultura do machismo, do estupro e das violências físicas e sexuais. Além disso, essas frases não educam, pelo contrário, afetam o desenvolvimento saudável da sexualidade das crianças e dos adolescentes, põe um peso desnecessário nas relações humanas e sociais e contribuem na repetição dos abusos e das violências.
Parece inofensivo, justifica-se que é apenas “o jeito de falar” e se esquece que é justamente por esse jeito de falar que os valores são repassados e perpetuados na sociedade. Justamente por se falar tanto, repetir tanto, que se naturaliza e as crianças aprendem e aceitam esses valores. Assim, o machismo que já é estrutural, torna-se herança valorosa a ser repassada de geração para geração
Por outro lado, a educação sexual se inicia desde cedo, na vida da criança. A sua forma velada, por meio de palavras ou de conversas não realizadas, educa também. Mas, ensina para a desproteção, para o desconhecimento de si mesmo e do próprio corpo, facilitando assim o caminho do abusador tanto para meninas quanto para meninos.
Mesmo quem se dedica a cuidar e proteger crianças e adolescentes, como pais e professores, se veem em desvantagem quando não praticam uma educação sexual clara, leve e contextualizada. Educação sexual não é ensinar sobre sexo. É instruir a criança a diferenciar carinho de abuso; afeto de violência e cuidado de exploração.
O abuso sexual de criança e adolescente é um fato, acontece e sempre aconteceu na história da humanidade e não faz muito tempo que foi considerado como fenômeno social perturbador, como um problema social e crime com punições legais.
Os casos aumentaram com a pandemia da Covid 19, mostrando que sempre estiveram lá, só receberam o reforço dos outros agravos da questão social, como a negligência do Estado, o desemprego, a fome e a morte em massa.
Falar sobre é produzir saúde mental, é evitar sofrimento psíquico para adultos e crianças. Falar sobre é inibir a ação do abusador. Falar sobre é desmontar a lógica do segredo e fortalecer a lógica da responsabilização. Falar é libertar crianças de outrora que foram abusadas e/ou violentadas sexualmente e as crianças do presente, os quais todos nós, família, Estado e Escola devemos proteger, cuidar e educar.
Vamos juntos construir a ponte do diálogo sobre esse assunto que é urgente, delicado, espinhoso, necessário e que merece toda nossa atenção e compromisso enquanto cidadãos que buscam uma sociedade mais humanizada, mais harmonizada e mais solidária! Essa conversa precisa ser realizada com os órgãos governamentais (Conselho Tutelar, Centro de Referência Especializado de Assistência Social, Serviços Médicos e Psicológicos, Disque 100), com as universidades, com as escolas, enfim, com todos aqueles que se colocam como agentes de transformações urgentes na nossa sociedade.
Por
Julianne Caju – Jornalista, Professora, Mestra em Educação/UFMT, Doutoranda do PPGECCO/UFMT
Paula de Ávila Assunção - Assistente Social, Mestra em Educação/UFM, Pós-Graduanda Terapia Familiar Sistêmica/ CEFATEF