Não são lendas que investigo, é a mim mesmo. (Sócrates in Fedro)
Por por CARLOS MALDONADO
13/07/2013 - 22:13
Informado por amigos sobre minha condenação por improbidade administrativa, e depois me inteirando pela imprensa sobre ela, farei algumas considerações em dois ou três artigos. Neste devo me cingir ao que li sobre a acusação e a sentença.
Como este processo já se tornou público, divulgado tanto pelas mídias quanto pelo próprio tribunal de justiça, recomendo à prolatora da sentença a correção dos poucos erros materiais que dela retiram beleza.
Indo a eles:
1) Foi condenado um tal Carlos Alberto dos Reis Maldonado por todas as vezes (e foram seis), assim grafado na sentença. Creio que a juíza quis referir-se a mim: Carlos Alberto Reyes Maldonado. Bastaria a curiosidade de passar os olhos sobre a eventual prova juntada pelo MP para encontrar centenas de vezes o meu nome corretamente escrito. Por favor, corrija seu texto, juíza. Afinal e depois de tudo, o nome é meu único patrimônio.
2) Onde se grafa art. 37 III definir se a sentença quis referir-se a II ou IX e corrigir;
3) No primeiro parágrafo do decisum foi declarado inconstitucional o art. 364 da LC 04/90 – mas ele não existe. A lei só tem 285 artigos. Por favor, corrija ou parecerá declarada a inconstitucionalidade do inexistente. E isso pode trazer um certo riso em faces infantis, como a minha.
4) Na fixação das penas, não foi especificada individualizadamente e definida a extensão da perda da função pública. Não é um erro material, mas se for possível, enriqueceria a peça tal discriminação.
Sobre a acusação: Na função de Secretário de Estado de Educação autorizei a contratação de parcela dos 6.825 contratos temporários efetivados entre 1995 e 1999. Como exerci por um ano a função e a sentença não individualiza o número de contratos por gestor, imagino que tenha ficado na média de 1.365 por ano ou 114 por mês. Mas isso é irrelevante. Bastaria um. E sendo mil ou sendo um, certamente autorizei. Logo, num primeiro momento e pelos pressupostos da sentença, já me assumo como réu confesso. Mas réu do que mesmo? Pela “ofensa ao preceito prescrito no inciso II c/c inciso IX, do art. 37, da Constituição Federal” e art. 11, da Lei 8.429/92 informará a juíza que diz ainda: “A Constituição da República, em seu art. 37, inciso IX, foi de clareza solar a impor que situações administrativas comuns não podem ensejar a contratação temporária de servidores”.
É mesmo? Fui lá ver o que dizem tais diplomas: Art. 37 e incisos citados da CF:
IX – a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público; Este é o da clareza solar ??? Impõe “que situações administrativas comuns não podem ensejar a contratação temporária de servidores” ??? Como ensina a própria magistrada: “Querer achar uma “brecha” para interpretar de forma ampla e genérica a Constituição federal é o mesmo que descumpri-la”. A interpretação da juíza, além de ampla e genérica é também novadora, imaginativa, novidadeira e de muita criatividade.
Leio a CF entendendo que o inciso remete à necessidade de leis complementares da união, estados e municípios. Nelas devem-se discriminar os casos que “ensejam a contratação temporária”.
O princípio, alegadamente infringido, vamos encontrar no inciso II:
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
Com isso temos que há duas formas de investidura: concurso público e nomeação nos casos de cargos comissionados. Além dessas duas, aquelas discriminadas na legislação complementar.
Em 1996 vigorava o art. 264 inciso VI da lei complementar 04/90 que era uma derivação do mandamento do inciso IX do art. 37 da CF. Infiro que era a base legal dos contratos. Pois bem, esse inciso foi declarado inconstitucional pela juíza no dia da promulgação da sentença em 5/7/2013… Com a sua inconstitucionalidade passei então a ser ímprobo. Talvez sejam possíveis as viagens no tempo, mas não contava com essa hipótese em 1996. Não sabia que 23 anos depois da sua vigência tal inciso seria declarado inconstitucional pela juíza. Existe ainda algum princípio do direito que ensine algo sobre isso?
Fica implícita na sentença a ideia de que os réus dolosamente fizeram aprovar uma lei inconstitucional para cobrir com pretensa legalidade atos que burlariam a constituição. Erro perdoável, típico de jovens – ah que saudades dos tempos em que eu também errava assim – Quixote com lança na mão consertando o mundo, redimindo os justos e punindo os maus…
Mas há dois problemas. Um é a história e o outro é a letra da lei.
Em 1990 Edson Freitas era o governador, em 1992 Jaime Campos e entre 1995 e 1999, Dante de Oliveira. Assim tanto a 04/90 quanto a 12/92 já existiam e estavam em vigência em 1996 quando exerci a função de secretário. Hoje se passou a entender que o inciso não é legal – entendam o que quiserem sobre isso – mas não podem imaginar que ele era alguma espécie de “manobra”. Era desde então e até um dia antes da publicação da sentença, lei em vigor.
Logo o que a juíza diz é que ao cumprir essa lei os gestores se tornaram ímprobos.
Oras! Às favas! Por essa lógica esquisita, confrontados com a lei os gestores devem avaliar preventivamente sua constitucionalidade para só então decidir se vão aplica-la ou não.
- Está na lei.
- É… Mas sei não… E se um dia ela for declarada inconstitucional?
Houve uma época em que juízes e desembargadores nomeavam assessores sem concurso público e em vários casos essas nomeações se tornavam vitalícias na pratica. Hoje imagino que isso não exista mais. É algo claramente imoral e que afronta os princípios constitucionais. Certamente hoje os assessores dos juízes são concursados. Mas devia haver uma lei que tratasse o assunto como “cargo em comissão”. Havendo tal lei estaria em consonância com os princípios da administração pública ou configuraria uma clara manobra acobertadora de privilégios?
Só por curiosidade, senhora juíza, a sua assessoria ingressou no serviço público em que concurso?
A hipocrisia sempre se veste com os mais sóbrios e morais discursos.
A sentença doutrina sobre os requisitos que legitimam a contratação temporária. Poderia também dar-se ao trabalho de ler e expor as leis, tanto a complementar estadual quanto 8.745/93. Comecemos por esta última, a federal. Diz a lei:
Art. 2º Considera-se necessidade temporária de excepcional interesse público:
IV – admissão de professor substituto e professor visitante;
X – admissão de professor para suprir demandas decorrentes da expansão das instituições federais de ensino, respeitados os limites e as condições fixados em ato conjunto dos Ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Educação;
§ 1º A contratação de professor substituto de que trata o inciso IV do caput poderá ocorrer para suprir a falta de professor efetivo em razão de:
I – vacância do cargo; II – afastamento ou licença, na forma do regulamento; III – nomeação para ocupar cargo de direção de reitor, vicereitor, pró-reitor e diretor de campus.
E a essas, somam-se várias outras hipóteses. Se lermos a lei vemos com clareza que ela diz respeito especificamente à união. Podemos aproveita-la por analogia, mas a lei que efetivamente se aplica é a complementar estadual.
O que diz ela?
Art. 264 Consideram-se como de necessidade temporária de excepcional interesse público as contratações que visem a:
IV – Substituir professor ou admitir professor visitante, inclusive estrangeiro, conforme lei específica do magistério; VI – Atender as outras situações motivadamente de urgência.
Em 1996 a lei do magistério mencionada no inciso IV estava em discussão com a categoria (junto com o SUDEB que mencionaremos em outro texto), e veio a ser aprovada apenas em 1998. De qualquer forma dirá o seguinte:
Art. 79 Em caso de necessidade comprovada, conforme Lei Complementar n° 12, de 13 de janeiro de 1992, poderão ser admitidos Profissionais da Educação Básica mediante contrato temporário.
Que casos levam à substituição de professores? Além de outros, licenças e afastamentos são os principais. Pessoas ficam doentes, infelizmente morrem, ficam grávidas, desempenham mandatos classistas e eletivos, são afastadas para qualificação por interesse pessoal, exercem cargos comissionados, são cedidas atendendo pedidos da união, dos municípios e dos três poderes – me lembro de alguns casos em que juízes e desembargadores nomeavam assessores pessoais em cargos comissionados e requisitavam a cessão do servidor, pratica também comum na Assembleia Legislativa, além de inúmeras outras situações. Contra algumas nos insurgíamos, creio inclusive que já devem, hoje, ser proibidas. De qualquer forma, eram (estas últimas), situações mais emblemáticas que volumosas.
Assim, muito mais que o inciso VI, era o inciso IV o verdadeiro esteio legal de tais contratações.
Lembro-me do Mário Ricci e da Eremita com suas caixas de fichas do setor de pessoal (ah sim, só lembrando, não havia internet ), percorrendo o estado buscando o atendimento ágil dos milhares de pleitos dos servidores. A instituição de uma junta médico-administrativa para avaliar o imenso volume de licenças (principalmente de saúde); a instalação de municípios novos (e a situação sempre discutida da absorção de escolas pelo estado), os processos de afastamento, as aposentadorias…
Sim, foram feitos muitos contratos.
Quando um magistrado ou promotor adoece, ou se ficam grávidos, não se contrata outro em caráter temporário. Reduz-se o trabalho e acumulam-se esperas. Na educação não é assim. Se uma professora fica grávida ela se afasta por alguns meses (na Tchecoslováquia por até 4 anos, na Alemanha por até 3) e não dá para dizer às crianças e aos seus pais para aguardarem em casa a prestação do serviço de estado.
Mas não vamos cansar a obviedade com descrições minuciosas do óbvio redundante.
Vamos ao último artigo que embasa a condenação.
Art. 11 da lei 8.429/92: Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições.
Por dedução, como sempre gostei da honestidade e imparcialidade e só vivo com o que gosto, me sobraram as violações à legalidade e a deslealdade institucional. Nestes últimos dois casos avaliando meus exercícios como gestor, também sou réu confesso. Minha lealdade sempre foi com a população e não com o Estado e suas instituições e em inúmeras ocasiões descumpri dolosamente a lei. Falarei sobre isso em outro texto. Mas curiosamente, analisando agora, vejo que a improbidade foi imputada justamente porque cumpri a lei. Cumpri o art. 264 incisos IV e VI da LC 04/90.
Tentei ser sério, mas às vezes, quando tentamos vestir uma fantasia de seriedade é quando nos tornamos mais ridículos. Por isso encerro com um sorriso e adianto que espero ser oficialmente notificado da decisão, já que sequer fui citado pessoalmente, como expõe a própria sentença. Se o promotor e a juíza trataram o processo como uma piada vou rir com eles e me sinto inclinado a aceitar honrado as penas que me couberam. Mas vou querer isonomia. Nas três esferas e nos três poderes.
Por fim, quanto à suspensão dos direitos políticos requeiro a elevação da pena para 5 anos e mais uma inovação hermenêutica para, com o consentimento do acusado e atendendo seu pedido aqui exposto, tornar a suspensão perpétua. O riso que me brota ao passar os olhos nas praticas republicanas não impede a náusea que também me acometem os poderes da república. Não quero ser cidadão, assumir qualquer responsabilidade, mesmo genérica que legitime o exercício das putarias dos senhores sacerdotes do Estado no executivo, legislativo e judiciário.
Já faz algum tempo, ao analisar minha vida, que do sacerdote que fui me tornei um herético.
E um herético absoluto, radical, perigoso. Assim a suspensão é justa, embora três anos sejam insuficientes.
Carlos Alberto Reyes Maldonado é professor da Unemat. Foi secretário de Educação em Mato Grosso
Post Scriptum – Para evitar dúvidas hermenêuticas esclareço que “putaria” é palavra dicionarizada e a emprego no sentido que lhe outorga o Houaiss: comportamento contrário ao pudor, à decência, depravação de costumes; devassidão, libertinagem, imoralidade, falta de honestidade, de princípios; safadeza, sacanagem, vileza; e O Aurélio: frascarice. Que significa leviandade no agir, estúrdia, extravagância, deboche.