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Acessibilidade:município tem prazo de 1 ano para apresentar projeto de adaptação de prédios públicos
Por Diário de Cáceres
01/07/2014 - 15:52

Foto: ILUSTRATIVA

Segundo dados do último Censo do IBGE, a população de Cáceres, atualmente de 87.942 pessoas, tem cerca de 31 mil pessoas que vivem com algum tipo de deficiência(física,visual,auditiva e outros tipos). Diante disto, como resposta à Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público contra o município de Cáceres, a juíza da 4 Vara Cível da comarca, Joseane Carla Ribeiro Viana Quinto, objetivando o cumprimento da legislação referente à acessibilidade dos portadores de necessidades especiais e mobilidade reduzida, e considerando que o município está notificado desde 2008, determinou nova notificação, para que o município apresente no prazo de 01 (um) ano projeto de adaptação de todos os prédios públicos e de uso coletivo, serviços, mobiliários  e equipamentos urbanos municipais às normas de acessibilidade constantes na Lei Federal 10.098/2000. Após a apresentação, o projeto deve ser executado no prazo máximo de 05(cinco) anos.

Veja abaixo a decisão na íntegra:
 

Vistos, etc.

 

Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO contra o MUNICÍPIO DE CÁCERES que tem por objeto o cumprimento da legislação referente à acessibilidade de portadores de necessidades especiais e mobilidade reduzida.

 

Lastreado no Inquérito Civil de n.º 60/2007, o ilustre promotor de justiça noticia que apesar de notificado a partir de 2008 até o ajuizamento da ação, o Município de Cáceres quedou-se inerte quanto às obrigações constitucionais e legais do dever de promover acessibilidade às pessoas portadoras de necessidades especiais.

 

À vista dos gravíssimos fatos, o Ministério Público ingressa com a presente ação para requerer: (a) antecipação dos efeitos da tutela; (b) processamento da ação conforme legislação pertinente; (c) procedência dos pedidos consistente na obrigação de fazer pertinente às adequações de todos os prédios públicos ou de uso coletivo, serviços, mobiliários e equipamentos urbanos municipais às normas de acessibilidade constantes da legislação federal e fiscalização do cumprimento pelos particulares. (fls. 05/24).

 

Documentos iniciais de fls. 26/159.

 

Liminar deferida às fls. 160/162.

 

Contestação às fls. 169/180, no qual pugna: (a) revogação da tutela antecipada deferida e multa aplicada; (b) improcedência dos pedidos diante dos limites legais/ orçamentários/ financeiros existentes; (c) em caso de procedência dos pedidos, extensão dos prazos estipulados pela decisão em razão das normas aplicáveis ao ente público referente à necessidade de concurso público e procedimentos licitatórios.

 

Certidão de intempestividade da resposta à fl. 193.

 

Impugnação ministerial às fls. 205/212.

 

Os autos vieram conclusos.

 

É o que merece registro.

Fundamento e Decido.

 

Versam os autos sobre pedido de obrigação de fazer consistente em obrigar o Município de Cáceres a cumprir a legislação nacional de acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais e mobilidade reduzida.

 

Em princípio, há de se reconhecer a tempestividade da contestação, conforme petição de fls. 194/195, já que a Fazenda Pública goza de prazo dilatado para apresentar resposta e o início do prazo de resposta se deu numa sexta feira dia 21/06/201 e finalizou em 22/082013, na forma do art. 188 CPC.

 

Por outro lado, observa-se que é caso de julgamento antecipado da lide, na forma do art. 330 CPC.

 

O processo em tela exige prolação de sentença, eis que a matéria fática já se encontra acostada aos autos, independendo de dilação probatória.

 

Inexistindo, assim, provas a serem produzidas pelas partes, tratando-se a matéria exclusivamente de fato e de direito e, estando o caderno processual devidamente instruído, impõe-se, desde logo, o julgamento antecipado da lide nos termos do artigo 330, I, do CPC.

 

Nesse sentido, prescreve a jurisprudência estadual em entendimento já sedimentado no Enunciado de n.º 46 da Primeira Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça de Mato Grosso: “SE O PROCESSO SE ENCONTRA APTO A SEU JULGAMENTO NÃO É DIREITO, MAS, SIM DEVER DO MAGISTRADO JULGÁ-LO, DE IMEDIATO, INDEFERINDO AS PROVAS INÚTEIS OU DESNECESSÁRIAS QUE EM NADA ACRESÇAM PARA O SEU DESATE.”

 

Ultrapassada essas questões, reporto-me à matéria de fundo.

 

Como dito alhures, cuidam-se os autos de ação movida pelo Ministério Público Estadual contra o Município de Cáceres, na qual pretende seja exigido cumprimento integral pelo ente público e pelos particulares da legislação nacional referente à acessibilidade de portadores de necessidades especiais e mobilidade reduzida.

 

Restou apurado que o Ministério Público atuante desta Comarca instaurou Inquérito Civil com o fito de apurar as providências tomadas pelo Município de Cáceres para viabilizar a prioridade no atendimento e acessibilidade de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, em atendimento ao disposto nas leis nacionais n.º 10.048/2000 e 10.098/2000.

 

Prova que desde o ano de 2007, o Ministério Público vem empenhando esforços na tentativa de obter o comprometimento do Município de Cáceres no sentido de viabilizar a prioridade no atendimento e acessibilidade de portadores de deficiência, através de envio de Termo de Ajustamento de Conduta e realização de audiência com os Gestores Municipais, todavia, embora estes tenham reconhecido se tratar de “tarefa e dever do Poder Público Municipal” até a presente data quedaram-se inertes.

 

Noticia ainda que segundo dados do último Censo do IBGE a população de Cáceres atualmente é de 87.942 (oitenta e sete mil novecentos e quarenta e duas pessoas), sendo que cerca de 31.013 (trinta e um mil e treze) pessoas vivem com algum tipo de deficiência (física, visual, auditiva e outros tipos).

 

Diante dessa situação insustentável e de ofensa grave a direitos fundamentais, busca o Ministério Público a tutela jurisdicional.

 

A proteção e a acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência constituem questões sociais de extrema relevância, tanto que foram previstas constitucionalmente.

 

Com efeito, dispõe a CR/88, no Título VIII - 'Da Ordem Social '-, Capítulo VII - 'Da Família, da

Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso '-, em seu artigo 227, § 2º, in verbis:

 

“§2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequa do às pessoas portadoras de deficiência.”

 

Esse dispositivo constitucional encontra-se regulamentado desde a promulgação da Lei nº 7.853/89 que, em seu artigo 2º, dispõe:

 

“Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem bem-estar pessoal, social e econômico.

 

Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outra s, as seguintes medidas:

(...).

V - na área das edificações:

a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte.”

 

A fim de conferir maior efetividade à regulamentação do dispositivo constitucional acima transcrito foi editada a Lei nº 10.098/00, cujo objeto gravita exclusivamente em torno da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, consoante se depreende de seu artigo 11, verbis:

 

“Art. 11 A construção, ampliação ou reforma de edifícios públicos ou privados destinados ao uso coletivo deverão ser executadas de modo que sejam ou se tornem acessíveis às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.”

 

De se asseverar que referida Lei é bastante explícita quanto aos deveres que competem à Administração Pública na concretização da acessibilidade em comento, conforme se verifica em seu artigo 23:

 

“Art. 23 A Administração Pública federal direta e indireta destinará, anualmente, dotação orçamentária para as adaptações, eliminações e supressões de barreiras arquitetônicas existentes nos edifícios de uso público de sua propriedade e naqueles que estejam sob sua administração ou uso.

 

Parágrafo único. A implementação das adaptações, eliminações e supressões de barreiras arquitetônicas referidas no caput deste artigo deverá ser iniciada a partir do primeiro ano de vigência desta Lei.”

 

Outrossim, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em 30/03/07 e ratificada pelo Brasil em 01/08/08, consubstancia-se no primeiro tratado internacional sobre direitos humanos com status de Emenda Constitucional -, porquanto aprovada por Decreto Legislativo (nº 186/08), nos termos do artigo 5º, §3º, da CF/88, já com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, e ratificada pelo Presidente da República através do Decreto nº 6.949, de 25/08/09.

 

Especificamente acerca da acessibilidade, sobredita Convenção prevê em seu artigo 9, verbis:

 

'Artigo 9

 

Acessibilidade

 

1. A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida, os Estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologia s da informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Essas medidas, que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e barreiras à acessibilidade, serão aplicadas, entre outros, a:

a) Edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações internas e externas, inclusive escolas, residências, instalações médicas e local de trabalho;

b) Informações, comunicações e outros serviços, inclusive serviços eletrônicos e serviços de emergência.

 

2.Os Estados Partes também tomarão medidas apropriadas para:

a) Desenvolver, promulgar e monitorar a implementação de normas e diretrizes mínimas para a acessibilidade das instalações e dos serviços abertos ao público ou de uso público;

b) Assegurar que as entidades privadas que oferecem instalações e serviços abertos ao público ou de uso público levem em consideração todos os aspectos relativos à acessibilidade para pessoas com deficiência;

c) Proporcionar, a todos os atores envolvidos, formação em relação às questões de acessibilidade com as quais as pessoas com deficiência se confrontam;

d) Dotar os edifícios e outras instalações abertas ao público ou de uso público de sinalização em braille e em formatos de fácil leitura e compreensão;

e) Oferecer formas de assistência humana ou animal e serviços de mediadores, incluindo guias, ledores e intérpretes profissionais da língua de sinais, para facilitar o acesso aos edifícios e outras instalações abertas ao público ou de uso público;

f) Promover outras formas apropriadas de assistência e apoio a pessoas com deficiência, a fim de assegurar a essas pessoas o acesso a informações;

g) Promover o acesso de pessoas com deficiência a novos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet;

h) Promover, desde a fase inicial, a concepção, o desenvolvimento, a produção e a disseminação de sistemas e tecnologias de informação e comunicação, a fim de que esses sistemas e tecnologias se tornem acessíveis a custo mínimo.'

 

Imperioso registrar que, nos termos do §1º do art. 5º da Constituição da República, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata e a vinculação do poder público e dos particulares aos direitos fundamentais é uma das principais dimensões dessa eficácia.

 

Nesse sentido, segue a lição de Ingo Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais, 9ª ed. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 385):

 

“Diversamente do que enuncia o art. 18/1 da Constituição Portuguesa, que expressamente prevê a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos fundamentais, a nossa Lei Fundamental, neste particular, quedou silente na formulação do seu art.5º, §1º, limitando-se a proclamar a imediata aplicabilidade das normas de direitos fundamentais. A omissão do Constituinte não significa, todavia, que os poderes públicos (assim como os particulares) não estejam vinculados pelos direitos fundamentais. Tal se justifica pelo fato de que, em nosso direito constitucional, o postulado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (art. 5º, §1º, da CF) pode ser compreendido como um mandado de otimização de sua eficácia, pelo menos no sentido de impor aos poderes públicos a aplicação imediata dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, nos termos desta aplicabilidade, a maior eficácia possível.”

 

Assim, constatada a existência de normas cogentes impondo à Administração o dever de adotar as medidas necessárias a conferir acessibilidade aos portadores de deficiência, impende reconhecer que não se cuida, simplesmente, de mero juízo de conveniência e oportunidade, tal como pretende fazer crer a parte ré.

 

O juízo de conveniência e oportunidade, ou seja, o espaço de liberdade para o administrador agir diante de uma situação concreta, deve guardar consonância com a Constituição Republicana, e é função precípua do Poder Judiciário a análise da constitucionalidade do ato administrativo.

 

O administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional. Destarte, o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e a conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional e elaboradas pelo legislador com as normas de integração.

 

Ao julgar a ADPF 45/DF (Informativo/STF nº 345/2004), o Rel. Min. Celso de Mello, abordando a possibilidade da intervenção judicial em políticas públicas e a questão da 'reserva do possível', assim decidiu, nos pontos que interessam para o caso dos autos:

 

'[...]'DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medidaefetivada pelo Poder Público... A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.'(RTJ 185/794-796, Rel.Min. CELSO DE MELLO, Pleno). É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, 'Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976', p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política 'não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado' (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à 'reserva do possível' (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, 'The CostofRights', 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político - administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da 'reserva do possível' - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS ('A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais', p. 245-246, 2002, Renovar): 'Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir,

relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.' (grifei). Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da 'reserva do possível', ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportam ente governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. Extremamente pertinentes, a tal propósito, as observações

de ANDREAS JOACHIM KRELL ('Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha', p. 22-23, 2002, Fabris): 'A constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação' (...). Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores

econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e parlamentos. Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes (...). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a

cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais.' (grifei) [...]'

 

Por conseguinte, verificada a inércia da Administração Pública e havendo a legítima provocação do Ministério Público afigura-se plenamente cabível a intervenção do Judiciário para o escopo de compelir o Poder Público a promover ações afirmativas a fim de assegurar a acessibilidade aos portadores de deficiência, não havendo escusas para a inércia administrativa a genérica invocação da limitação de recursos orçamentários.

 

Nesse sentido trilha a jurisprudência:

 

'PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. VIOLAÇÃO A DISPOSIÇÃO LITERAL DE LEI. AÇÃO QUE VISA A TUTELA DE INTERESSE DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA E DE IDOSO. INTERESSE PÚBLICO COLETIVO. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE. Há interesse público coletivo na ação proposta com o objetivo de assegurar o direito de acesso físico a edifício de uso coletivo por idosos, portadores de deficiência e pessoas com mobilidade reduzida. A Lei 7.853/89 deve ser interpretada à luz da igualdade de tratamento e oportunidade entre as pessoas que fazem uso de edifício destinados a uso coletivo, facilitando o acesso daqueles que tem a mobilidade reduzida em razão de necessidade especial.  Nas causas em que se discute interesse de pessoa portadora de deficiência ou pessoa com dificuldade de locomoção, e também interesse de idoso, é obrigatória a intervenção do Ministério Público. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido formulado na ação rescisória.' (Destaquei) (REsp 583.464/DF, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 01/09/2005, DJ de 24/10/2005, p. 308.)

 

'CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTAR. DEFICIENTE FÍSICO. UTILIZAÇÃO DA TRIBUNA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. ACESSO NEGADO. ILEGALIDADE. IGUALDADE DE TRATAMENTO. VALORIZAÇÃO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. 1. Concessão de mandado de segurança em favor de Deputada Estadual portadora de deficiência física para que sejam criadas condições materiais, com a reforma da Tribuna para lhe permitir fácil acesso, de expor, em situação de igualdade com os seus pares, as idéias pretendidas defender, garantindo-lhe o livre exercício do mandato. 2. Odiosa omissão praticada pelo Presidente da Assembléia Legislativa por não tomar providências no sentido de

adequar a Tribuna com acesso fácil para a introdução e a permanência da impetrante em seu âmbito, a fim de exercer as prerrogativas do mandato em posição equânime com os demais parlamentares. 3. Interpretação do art. 227, da CF/88, e da Lei nº 7.853, de 24/10/89. 4. Da Tribuna do Egrégio Plenário Legislativo é que, regimentalmente, serve-se, obrigatoriamente, os

parlamentares para fazer uso da palavra e sustentar posicionamentos e condições das diversas proposições apresentadas naquela Casa. 5. É a Tribuna o coração do parlamento, a voz, o tratamento democrático e necessário a ser dado à palavra de seus membros, a própria prerrogativa máxima do Poder Legislativo: o exercício da palavra. 6. A Carta Magna de 1988, bem como toda a legislação regulamentadora da proteção ao deficiente físico, são claras e contundentes em fixar condições obrigatórias a serem desenvolvidas pelo Poder Público e pela sociedade para a integração dessas pessoas aos fenômenos vivencia dos pela sociedade, pelo que há de se construírem espaços acessíveis a elas, eliminando barreiras físicas, naturais ou de comunicação, em qualquer ambiente, edifício ou mobiliário, especialmente nas Casas Legislativas. 7. A filosofia do desenho universal neste final do século inclina-se por projetar a defesa de que seja feita adaptação de todos os ambientes para que as pessoas com deficiência possam exercer, integralmente, suas atividades. 8. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança provido para reconhecer-se direito líquido e certo da impetrante de utilizar a Tribuna da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, nas mesmas condições dos demais Deputados, determinando-se, portanto, que o Presidente da Casa tome todas as providências necessárias para eliminar barreiras existentes e que impedem o livre exercício do mandato da impetrante. 9. Homenagem à Constituição Federal que deve ser prestada para o fortalecimento do regime democrático, com absoluto respeito aos princípios da igualdade e de guarda dos valores protetores da dignidade da pessoa humana e do exercício livre do mandato parlamentar.' (Destaquei) (RMS 9.613/SP, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, j. em 11/05/1999, DJ de 01/07/1999, p. 119.)

 

AÇÃO CIVIL PÚBLICA- Obrigação de fazer - Adequação de imóvel público que abriga o Fórum da comarca de São José do Rio Pardo, de forma a garantir o seu acesso por pessoas portadoras de deficiência física ou com mobilidade reduzida - Exclusão social que afronta os ditames constitucionais - Dever de cumprir os requisitos de acessibilidade determinados pela Lei nº 10.098/2000 - Procedência da ação que deve ser mantida - Recursos oficial e voluntário não providos. (990101060558 SP , Relator: Magalhães Coelho, Data de Julgamento: 29/06/2010, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 06/07/2010)

 

Portanto, delineado hígido conteúdo probatório, em especial o Inquérito Civil colacionado na íntegra, evidenciando a atuação da Promotoria da Cidadania de modo intenso por mais de 05 (cinco) anos em face da municipalidade para agir frente à gravíssima omissão estatal quanto aos direitos dos portadores de necessidades especiais e mobilidade reduzida, o caso é de procedência total dos pedidos da exordial para tornar efetivos os comandos constitucionais sobre o tema.

 

ISSO POSTO, e por tudo mais que dos autos consta, decido:

(a)        A teor do art. 269, I CPC c/c art. 227 § 2.º CR/88 e legislação nacional pertinente, JULGAR TOTALMENTE PROCEDENTES os pedidos constantes da presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO contra o MUNICÍPIO DE CÁCERES, ratificando os termos da liminar deferida, à exceção dos prazos nela estipulados, para:

(I)        determinar que o MUNICÍPIO DE CÁCERES apresente, no prazo de 01 (um) ano, projeto de adaptação de todos os prédios públicos e de uso coletivo, serviços, mobiliários e equipamentos urbanos municipais às normas de acessibilidade constantes na Lei Federal 10.098/2000, no Decreto n° 5.296/2004 e na NBR 9050:2004, devendo no prazo máximo de 05 (cinco) anos executar integralmente o projeto de acessibilidade;

(II)      determinar a imediata fiscalização pelo MUNICÍPIO DE CÁCERES do cumprimento da legislação sobre o tema acessibilidade dos particulares, especialmente quando da construção, ampliação ou reforma de edifícios privados, somente podendo obter aprovação do órgão municipal competente se houver comprovação pelo requerente de que está sendo observada a acessibilidade ao prédio pelas pessoas portadoras de deficiência;

(b)       Intime-se a Municipalidade para que no prazo de 05 (cinco) dias comprove o cumprimento da liminar deferida, sob pena de aplicação das sanções correspondentes;

(c)        Sem custas e sem honorários na forma da lei;

(d)       Publique-se. Registre-se. Intime-se. Cumpra-se.

 

Cáceres, 26 de junho de 2014.

 

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