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O homem moderno e o espaço público
Por por Cristhiane Ortiz
13/12/2018 - 10:07

Foto: arquivo

Nesta crônica relembramos a visão de Hannah Arendt, filósofa alemã de ascendência judia que se dedicou ao estudo filosófico e político pelo respeito ao outro e pela ação enquanto postura individual e coletiva no espaço público, segundo a interpretação do filósofo Marcos Luiz Silva, professor da Universidade Estadual do Piauí. Graduado e Especialista em Direito. Mestrando em Filosofia (UFPI).

De acordo com Arendt, poder ir e vir, e sobretudo poder ocupar os espaços públicos é essencial para o homem, o termo “público” significa o próprio mundo em que vivemos, sendo, apesar disso, um espaço limitado e vinculado à atividade humana, tornando-se, portanto, um “artefato humano” que possibilita uma interconexão entre as pessoas, o dissenso, o debate, ou ouvir e expor opiniões que configuram ações práticas necessárias à boa convivência humana (ARENDT, 2007, p. 62).

Silva diz que Arendt( 2007) compreende que os períodos de isolamento e de reflexão solitária são necessários, como os momentos de recolhimento para criar algo, ou para se encontrar, uma pausa, a solidão necessária para o autoconhecimento, segundo Arendt, o isolamento do sábio, a imparcialidade, do historiador e do juiz, do pintor em sua lida, como ela advoga em Verdade e Política, de 196 (ARENDT, 1967, p. 49).

No entanto, Hannah, considera que, em se tratando do espaço público e da política, o isolamento e distanciamento individual não podem ser vistos como coisas normais, porque esse experienciamento de uma vida coletiva integra o próprio núcleo do conceito de democracia. A autora diz que desde a Grécia antiga o homem tem vinculado a política a um espaço de convivência pública, onde as pessoas debatem suas ideias, e tomam suas resoluções políticas, exercendo, então, a democracia. Arendt pondera que o espaço público não é exclusivamente um espaço físico ou territorial onde as pessoas debatem livremente sobre assuntos políticos. Ele possui outras extensões na atualidade, como espaços urbanos, centros culturais, sociais, e os espaços tecnológicos.

O espaço público tem a função de promover o encontro, de trocas e de circulação de uma comunidade. Por isso, as ruas, praças, parques, calçadas e ciclovias devem ser abertos aos indivíduos sem diferenciação.

Refletindo sobre algumas questões apresentadas pela filósofa, podemos creer que os espaços públicos, necessariamente não são espaços físicos, podem ser também espaços de bate papos, como as redes sociais, via web, como o wahtsapp, e entre outros. Assim como a escola, o conhecimento não se restringe às salas de aulas, vai além dos muros e espaços delimitados, pode-se aprender também nas aulas à distância, nos encontros semipresenciais, nos espaços dos sites e plataformas, como a aprendizagem de línguas estrangeiras, ou outros cursos que se proponha a fazer, o conhecimento está em toda parte!

Talvez seja por isso que os antigos já diziam que o mundo é uma grande escola, e é verdadeiro, pois aprendemos em todos os lugares, como por exemplo quando viajamos,(fisicamente) ou pela tela do computador, não somos os mesmos depois de uma viagem, sempre aprendemos algo, e expandimos nossos horizontes, seja referente à cultura , ao modo como as pessoas vivem ,a culinária, o jeito de falar, o idioma, ou o sotaque regional, nós voltamos diferentes, quando retornamos de uma viagem, aprendemos novas expressões ,os costumes do lugar, enriquecemos o nosso vocabulário, regressamos mais vividos.

Seguindo o diagnóstico da filósofa, observarmos a importância de se ter a liberdade de ir e vir, de poder desfrutar do privilégio que se tornou poder frequentar e desfrutar de lugares públicos (agradáveis), ainda que não possuíssem a sofisticação dos espaços dos shoppings centers, ou dos parques e outros lugares públicos. Hoje em dia, é cada vez mais raro, poder ir e vir com segurança, levar a família para passear e curtir momentos agradáveis ao ar livre, como ir ao cinema, ou fazer “piquenique” com os amigos, e família.

Antes era corriqueiro sair com a família para a praia, levar o cachorro, a dedicada secretária do lar, e a criançada que sempre tinha um bom amigo pra acompanhar. Nos banhos de rio aqui em Mato Grosso, o pai dava um jeito de lavar o carro de passeio, que voltava brilhando, lembro-me que meu pai tinha um Galaxie Landau, íamos ao rio, e enquanto nós banhávamos, rindo, ele lavava o velho Landau, e agora percebo que não havia bebida, não víamos as caixas de cerveja, de agora, que ir a um passeio é sinônimo de fartas latas de cervejas, como se fosse impossível se divertir sem as danadas, responsáveis pela bela enxaqueca do dia seguinte.

A sociedade tornou-se altamente consumista, antes na praia era comum vermos vendedores de biscoitos, de chá mate, picolés de frutas, sanduba natural, mas agora são tantos vendedores ambulantes, com seus produtos, que tirar um cochilo na praia, só se o camarada investir com força na velha cachaça, ou passar a noite na balada, pois a todo momento aparece alguém oferecendo alguma coisa pra beber, comer e etc, não só na praia, como também nas esquinas, e ruas.

Uma vez viajei e me hospedei num hotel no centro, e não consegui dormir porque tinha uma senhora vendendo biscoitos a noite toda, a pobre mulher ficou gritando, oferecendo seus biscoitos, o ar não estava funcionando, e eu passei a noite ouvindo seus gritos, confesso que praguejei, desejei que ela se calasse e fosse embora, mas depois resignei-me, afinal ela só estava defendendo seu “ganha-pão”, como todos os ambulantes nas praias e esquinas do mundo.

Desfrutar de um espaço público com a família hoje está mais difícil, e mais raro, não somente por causa da locomoção, e da falta de segurança , onde o homem acaba se vendo recluso, privado de sua liberdade, na condição de refém, da violência, e do caos, do trânsito, que imperam, principalmente nos grandes centros, fatores que levaram o indivíduo a um estado de apatia, ao surgimento de homem circunspecto, desconfiado,

acuado, e por isso, reativo demais, qualquer equívoco se torna motivo para uma discussão que pode gerar muitos incômodos, e ceifar vidas.

 

Assim sendo, a solidão, o isolamento das pessoas, (não é maior porque contamos com a tecnologia, que pode ‘aproximar’ quem está a quilômetros de distância, mesmo que seja uma solidão compartilhada), a angústia e o vazio que o homem sente são sequelas de uma sociedade consumista que acredita que vale pelo que consome, num mundo em que vê-se degradado “em uma sociedade industrial cada vez mais mecanizada e automatizada” , como bem disse o itabirano Carlos Drummond de Andrade num poema que transcreve o homem moderno :

EU, ETIQUETA Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade,

trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comparo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam e cada gesto, cada olhar cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente.

(Carlos Drummond de Andrade)

 

 

 

Drummond no poema Eu, etiqueta, retrata o homem- objeto da indústria da moda, que renega a sua identidade tornando-se signos outros que o desumaniza, “já não sou mais eu”, o poeta diz que se transformara num artigo industrial, um artefato, tarifado, da era do consumo, do mundo capitalista.

Talvez seja por isso que sentimos que a modernidade acaba contradizendo a fraternidade, a cidadania, que todos têm direito, a liberdade, a segurança, o direito de ir e vir, de poder revisitar lugares, ocupar espaços públicos, sem distinção, de sexo,religião, e orientação sexual, até porque vivemos num mundo em comum, único, e que sempre dependerá de nossas atitudes, para que possamos compartilhá-lo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cristhiane Ortiz Lima é graduada em Letras na UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO.

Mestranda em Linguística na UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO.

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