E nas festas, aquelas de maiores pompas, ele chegava: -Ele chegou! E não poderia faltar, afinal a presença dele era o prestígio para o evento.
Foram muitos os mitos que viviam na cidade; ficavam ali, entre o folclore e a materialidade dos fatos vividos. “A cidade vive dos que vivem nela”; a cidade vive do seu povo e aqueles que se tornam mitos de suas cidades são também elementos importantes da caracterização da identidade local. Um povo que tenha identidade cultural é mais feliz porque sabe o fundamental sobre si: é um povo que sabe quem é! Seria menor o Rio de Janeiro sem o profeta Gentileza; São Luis do Maranhão sem Ana Jansen não seria a mesma e Cuiabá sem Mãe Bonifácia, Maria Taquara e até Jejé de Oyá... “seria como um jardim faltando flor”... perderia parte de sua alma.
E como se faz um mito? Acredito que eles sejam predeterminados assim, afinal tem que se ter muita certeza de si para ser um mito. Eles não se autointitulam, eles nascem para vencer as lógicas sociais e determinar que o mundo é maior... e além. O mito é gente e é mais gente que as pessoas “normais” porte tem seus fatos folclorizados, que lhes agrega magia a vida! Tornam-se fabulosos.
Cáceres tem alguns. Beja é assim... Benjamim. Aparecia ele na festa: -É Beja! Que enchia a nós, as crianças da época, de dúvidas... Beija quem?.. É um Beijoqueiro? Belas festas, tanta fartura. Ele arrematava um bom prato e eu me perguntava: porque ele não trouxe a família dele?... depois descobrir que a família dele era todo cacerense!
Assim se fez Beja a lenda. Diziam que guardava em sua mente um calendário fantástico com data de aniversário das pessoas daqui. Que memória, eim! Sabia a data, o local e a hora de chegar, seja na casa ou em algum clube, para as festas mais alegres. Sempre bem apanhado e sem pronunciar uma palavra sequer, bastava apenas subir as bochechas e fechar os olhos em um sorriso e todas as portas já estavam abertas; isso é magia, é fábula de seres mágicos, como de fato deve ser Beja.
Ah! Atribuía-se a ele tocar os sinos da Catedral São Luis e da Igreja Perpétuo Socorro e também a limpeza delas. Difícil aceitar ajuda, limpava sozinho! Para mim, haveria uma porção de seres mágicos que o ajudava, afinal uma igreja que guarda um dragão amarrado com fios de cabelos de Nossa Senhora só pode atribuir magia a seu maior guardião e cuidador.
Ele é uma mistura de Carlitos de Charles Chaplin com Chaves de Roberto Bolaños. Carlitos pela sua simplicidade feliz e Chaves pela pureza e por se agradar pela boa comida! Mas estes, Chaves e Carlitos, são personagem; Beja é uma pessoa folclorizada, que além de ter diversos mistérios fabulosos que o cerca, é humano! Portanto está na condição de passar por tudo que sofre o corpo e a vida. Mesmo que possa ter sofrido, Beja e qualquer um desses mitos, parece estar incólume, porque estão em um grau maior de evolução e são imortais.
Os mitos não somem, eles pairam no ar e se espalham na memória. Como eles tem uma autodeterminação impactante, imaginamos que sempre estão bem. Beja está lá no Lar das Servas de Maria, e a gente só percebeu que ele estava lá quando o destino mandou notícias e uma das irmãs dele mandou avisar que procurava alguém da família... Achou e está vindo visitá-lo. Quantas décadas de distanciamento e agora é possível vir, voltar e ver que Beja é pessoa muito querida e sempre será. Que momento único
Sortudo de quem conquistar a condição de ser folclorizado, por que esses foram alem e fugiram do padrão. Mais feliz mais ainda se for por memória de afeto que se tornaram mitos. Ainda há tempo de viver ou reviver estória de Beja, antes que o corpo parta e fique a memória eternizada.
Guilherme Vargas, professor, poeta, cronista
*especialmente para o Diário de Cáceres