Tempos difíceis, vivemos. A História pode vir a ser contada pelo Google. Até então, os grandes personagens históricos eram resumidos do confronto entre seus acertos e erros; do prevalente, nomeava sua biografia. Coisas do passado. Explico.
Agostinho de Hipona era um jovem extremista, de vida juvenil extravagante. Confessa que o próprio procedimento era repreensível. Posteriormente, batizado e reconhecido em seu sacerdócio, se torna Santo Agostinho, um dos doutores da Igreja.
E se vivesse Agostinho no presente? Hoje, na lógica a imperar nas redações de uma imprensa sensacionalista, estaria justificado, em maior grau, naquilo que os arquivos digitais retratam, com repugnante ênfase do lado negativo. A essência passaria à exceção, e a regra seria o ‘ser’ ali descrito. Imutável, doloridamente petrificado como ritual póstumo da sandice inflexível.
Pensamentos, como - ‘o supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres’, ou, ainda, ‘Dois homens olharam através das grades da prisão, um viu a lama, o outro as estrelas’-, seriam esquecidos como esquecidos são os ordinários. É o fim do extraordinário em nossas vidas, em nossa História e, talvez, até na nossa Filosofia.
Este mesmo texto, ou qualquer outro que venha a publicar, tomado pela biblioteca virtual, poderá, num futuro não muito distante, resumir a vida de seu autor. Vejam o perigo a que estamos expostos.
O resultado será uma sociedade de covardes, do politicamente correto, de indiferentes. O medo da exposição aniquilará as lideranças de propósitos bem definidos e transparentes. Os analfabetos virtuais, os ‘coxinhas’ da conexão anônima, reinarão. O anonimato será a República da nova ordem ‘democrática’. Sentiremos saudades dos fariseus. Exemplifico de forma ainda mais didática.
Ao nos referirmos a Nelson Rodrigues, e olha que ele falecera há anos, o que nos sobra como pensamento? Um reacionário, escritor impudico, e assim vai até a imaginação não mais alcançar, ou o mundo virtual destacar. Estado mental negativo, ou não? - ‘O desenvolvimento humaniza a máquina e maquiniza o homem’, ‘Como é antigo o passado recente’, ‘O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata’, ‘Quem nunca desejou morrer com o ser amado, não amou, nem sabe o que é amar’-. Alguém se lembra dessas palavras? Nelson escrevia como ninguém.
Nem vou pedir explicação a João Ubaldo Ribeiro, os arquivos dizem que gostava de beber. E daí? ‘Se não entendo tudo, devo ficar contente com o que entendo. E entendo que vejo estas árvores e que tenho direito a minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me envergonhe de minha fala; não diga que minha fala é melhor do que a sua; não diga que eu sou bonito, porque sua mulher nunca ia ter casado comigo; não seja bom comigo, não me faça favor; seja homem, filho da puta, e reconheça que não deve comer o que eu não como, em vez de me falar concordâncias e me passar a mão pela cabeça; assim poderei matar você melhor, como você me mata há tantos anos’ (Vila Real).
A vida vale a pena, se pena tivermos de nossa ignorância. É por aí...
GONÇALO ANTUNES DE BAROS NETO escreve aos domingos em A Gazeta (email: antunesdebarros@hotmail.com).