Você já duvidou, hoje? Se, não, então duvide. Duvide da cultura que se aprende, dos gestos que encanta, das palavras que enobrece e escandaliza, da vida e da morte como finitude, do absoluto e da tentativa de relativizar a tudo e a todos, e, acima de tudo, duvide de qualquer convenção social.
Aliás, duvide da maldade e da bondade, da vitória e da derrota, da autoridade e da forma, do conforto e da ilusão, do luxo e da miséria. Se, ainda assim, não se sentir liberto, duvide que você esteja duvidando. Se coloque à prova.
Duvide, sem peia, do acusador implacável e do julgador cruel, do bonzinho e de sorriso largo e do também sisudo e com aparência de sereno. Leve a dúvida além de sua própria imaginação e duvide que esteja imaginando tal estado de coisa. Não acredite se da objetividade alcançada, o talvez lhe tenha acenado de longe. Por fim, duvide que o sentimento de liberdade alcançado já lhe basta, e duvide dele mesmo.
A liberdade é reveladora. Liberte-a, está em todos. ‘A única condição adequada da liberdade no ser humano é o libertar-se a liberdade no ser humano’ (Heidegger). Para o filósofo alemão, o problema consiste em que o ser humano se estabelece na cultura que criou, na busca de segurança e proteção, e com isso perde a consciência de sua liberdade (Safranski).
Não cheguemos aos céticos, já minimizados por Descartes. Nem nos ocupemos do cartesianismo e da dúvida hiperbólica; Locke já o fez acerca das ideias inatas do pensador francês. Mas, em processo continuo, precisamos entender a complexidade humana.
Conheci um menino, malabarista de primeira, jogava os objetos para cima, num movimento circular que encantava a todos no sinaleiro muito bem escolhido. Ganhava uns trocados, e levava vários ‘conselhos’, do tipo – vai trabalhar, vagabundo-. Seu apelido, Cabralzinho.
Para Jesus de Nazaré, peca-se não pelo que se ingere, mas no que sai pela boca. Vive-se a ilusão da crítica irrefletida, mordaz, que fere mais que o chicote. Quebra os ‘ossos’ da alma. E o que é pior, em tempos de arquivos virtuais, é indelével.
Cabralzinho, de somente quinze anos, era arrimo de família, alimentava seus pais doentes, e mais dois irmãos menores. Perguntei-lhe quem o retribuía mais pelo espetáculo, os dos carrões ou os dos populares? Nem pensou direito, já tinha seus referencias científicos pesquisados na labuta – os dos carrinhos. Apartei: E quem elogia mais? Moço, os dos carrões; mas não dão dinheiro, não.
Sem consciência crítica, talvez por faltar-lhe referencial teórico, mas parece que o menino entendeu algo. Para a matéria, mais vale o dinheiro suado dos indiferentes. Ajuda a forrar o estômago. Para a alma, a essência das coisas, a usura dos ricos, petrifica, em fingimento, a miséria alheia.
O malabarista Cabralzinho, provou, momentaneamente, da liberdade. Aceitou como os estoicos, a escola da vida e a natureza humana. Somente a simplicidade, de começo, nos leva ao ápice do conhecimento. Libertemo-nos das convenções culturais e sociais. Ou a elas nada dediquemos; assim, a felicidade nos alcançará.
É por aí...
GONÇALO ANTUNES DE BARROS NETO escreve aos domingos em A Gazeta (email: antunesdebarros@hotmail.com).