Na cozinha construída especialmente para a produção artesanal de Canjinjin, na casa onde mora em Vila Bela da Santíssima Trindade (a 562 km de Cuiabá), Eudes Frazão, de 76 anos, transforma a mistura que leva cachaça, mel, gengibre e especiarias, na bebida centenária de origem africana. O vilabelense é um dos guardiões da tradição e da história da cidade, que foi alvo da exploração dos portugueses pela presença do ouro. Eudes viveu em Vila Bela da Santíssima Trindade até completar 14 anos, quando se mudou para Cuiabá para estudar no Colégio Salesiano São Gonçalo, que funcionava na modalidade de internato. Depois, chegou a voltar rapidamente para a cidade natal, mas logo partiu para Campo Grande (MS), onde seguiu carreira militar.
“Mais da metade dos alunos moravam lá [no Colégio Salesiano São Gonçalo], eram do interior de Mato Grosso acolhidos pelos padres. Lá você também aprendia uma profissão: marceneiro, tipógrafo, sapateiro… Eu fui um dos alunos que pegou a marcenaria, saí de lá formado na teoria e na prática. Era particular, mas era aquela história… Nem lembro se meu pai aguentou pagar”.
Em 1996, quando deixou o Exército, as raízes de Eudes falaram mais alto e ele retornou para a cidade em que nasceu. Foi quando o Canjinjin, que já havia feito parte da infância do vilabelense quando ele vivia em uma fazenda em que os pais trabalhavam, ressurgiu na vida de Eudes.
“Meu pai fazia, porque tinham as festas com a Dança do Congo. O Canjinjin não era divulgado nem comercializado como é hoje. O Governo Blairo Maggi criou o Projeto Canjinjin, visando gerar emprego e renda para Vila Bela. Criamos uma cooperativa, ele colocou o Sebrae para dar suporte para nós durante três anos”.
Pai de Eudes também produzia o Canjinjin quando eles moravam em uma fazenda de Vila Bela da Santíssima Trindade. (Foto: Fred Gustavos)
Eudes foi responsável pelos anos de auge do Canjinjin, além de ter atuado ativamente como presidente de uma cooperativa que reuniu outros produtores, Vila Bela da Santíssima Trindade chegou a ganhar o Empório Canjinjin, onde a bebida centenária e outros produtos de artesãos da cidade eram vendidos.
“Nós tínhamos as linhas de produção, todo mundo produzia, tinham 53 cooperados. Criei o registro da marca do Canjinjin, fizemos a informação nutricional. Quem criou o rótulo foi o professor Nemer, da Universidade de Viçosa. O Canjinjin era escrito com ‘K’ ou com ‘M’ no final, então ficou padronizado na forma que escrevemos hoje”.
Com o apoio do Poder Público, os membros da cooperativa puderam optar entre uma cozinha coletiva ou individual, que seria construída na casa de cada um, para a produção do Canjinjin. Eudes conta que a maioria preferiu a segunda opção. É nesse espaço que a bebida é produzida na residência dele.
“O Governo atendeu, mas só que não funcionou, eu tinha problemas com o sabor. Fazia uma mistura de sabor, porque embora eu tenha desenvolvido e melhorado a receita do Canjinjin, dado uma para cada, mas nunca sai igual. Então, eu tinha que fazer a unificação de sabor em um recipiente de mil litros para poder envasar e colocar no mercado. O processo se tornava mais trabalhoso”.
Cooperativa não resistiu ao tempo
Eudes lamenta que, tempo depois de ter deixado a presidência da cooperativa, a mesma foi acabando aos poucos. O auge dos artesãos do Canjinjin terem mais de 30 pontos de vendas, se transformou na escassez da bebida, que já não era mais produzida conforme a demanda.
“Em uns dois anos acabou tudo. A Cooperbela não existe mais. O pessoal começou a produzir individualmente, cada um faz na sua casa e vende seu pouquinho. Cada um produz com seu rótulo, nome e endereço. Quando saí me coloquei à disposição da cooperativa para ser representante comercial deles, mas acabou não tendo produção, os clientes pediam e não tinha produto”. Para garantir uma renda extra e continuar a tradição do Canjinjin, Eudes começou a produzir alguns litros da bebida para revender. Rotina que segue religiosamente até hoje. Há 30 anos, ele é responsável por abastecer o Sesc com a bebida.
“Já cheguei a mandar Canjinjin para Brasília para a Associação do Banco do Brasil, para um escritor que lançou um livro no Rio de Janeiro sobre a África, ele queria uma bebida histórica. As pessoas pedem e a gente envia. É uma fonte de renda também”.
Além de conhecer a receita do Canjinjin e dominar todas as etapas de preparo para alcançar o sabor tradicional, Eudes também é capaz de contar com facilidade a história de Vila Bela da Santíssima Trindade. Assim como grande parte dos primeiros moradores, ele é descendente de escravos.
“Eles [capitães e generais] mandavam em tudo. Essa fase de Vila Bela foi uma coisa muito humilhante, mas graças a Deus já passou. Vila Bela já foi a cidade mais negra de Mato Grosso, mas a partir dos anos 70 isso acabou, quando os imigrantes do Sul começaram a chegar aqui”.
Ele explica que quando os portugueses descobriram o potencial da mineração de ouro em Vila Bela da Santíssima Trindade, decidiram transformar o território na capital da Província de Mato Grosso. Logo os primeiros capitães e generais chegaram para comandar a cidade e, com eles, chegaram os escravos.
“Nesse período a vida deles [dos negros escravizados] era de muito trabalho, porque as obras de arquitetura foram feitas por escravos. Compravam escravos e vinham para Vila Bela pelo Rio Guaporé. A vida deles, coitados, era um inferno. Saiam do seu país e caiam no fim do mundo para trabalhar como escravos, expostos a muitas violências”.
Bebida mistura cachaça, gengibre e especiarias. (Foto: Fred Gustavos)
Dança do Chorado, Dança do Congo e Canjinjin
Eudes cresceu na fazenda do tio, onde o pai trabalhava como gerente e mãe como professora da escola rural, profissão que ela teve durante 30 anos. Ele chegou a ser um dos alunos da mãe e se lembra de quando Vila Bela da Santíssima Trindade não tinha mais que quatro ruas.
“Era uma vida simples na fazenda, meu pai mexia com a roça, aquela vida rural mesmo. Todos nasceram em Vila Bela. Aqui a gente tinha três ruas paralelas e duas perpendiculares. Era pequeno, não tinha nada. Aqui não tinha energia elétrica, não tinha caminhão, trator, nada”.
Durante a infância, era comum para Eudes acompanhar as manifestações culturais de Vila Bela da Santíssima Trindade, como a Dança do Congo, que também é de origem africana. Ele explica que o Canjinjin era usado pelos Soldados do Congo, que encenavam uma batalha entre dois reinados africanos, para garantir a energia necessária para percorrer a cidade.
O Canjinjin chegou através dos escravos, faziam sua bebida e suas festas. É super energético para eles aguentarem ficar dois dias dançando, fazendo a evolução, buscando os festeiros em casa, levando para igreja… É uma festa grande e os soldados do Congo são irrigados pelo Canjinjin para aguentar tudo isso”.
O Canjinjin também estava presente na Dança do Chorado, quando as mulheres de escravos fugidos pediam clemência pelo castigo imputado aos maridos ou outros entes queridos. As garrafas eram equilibradas nas cabeças das dançarinas.
“Naquela época, os generais que administravam a cidade vinham todos solteiros, então havia uma sacanagem muito grande, que eles por serem quem eram, ficavam com as mulheres que queriam na marra. Nos dias de festa eles chamavam elas para apresentar aquela dança e eles tomavam todas. Elas pediam clemência para os maridos, para aliviar a prisão e chicotadas de alguns. Muitas conseguiam”. As histórias saltam com facilidade da memória de Eudes e as lembranças também estão presentes nas garrafas de Canjinjin produzidas na casa dele. O vilabelense se alegra por ser um dos guardiões da tradição. Pai de oito filhos, lamenta que nenhum deles tenha se interessado por aprender a receita da bebida. “Eles não aprenderam a fazer, cada um tem sua profissão e seu trabalho. Quem está segurando a barra mesmo são as pessoas mais velhas. São poucos da nova geração que se envolvem. Ainda bem que minha saúde é de touro, como dizem”.