"Também fui menino pobre de rua, engraxate, lavador de carro, vendedor ambulante, entre tantos outros ofícios. Salvou-me a valentia de minha mãe, que não me permitiu jamais abandonar a escola pública. Não me vanglorio, porém, de haver sido menino trabalhador precoce porque praticamente não tive infância, somente trabalho duro”. O depoimento é do ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) João Oreste Dalazen, que trabalhou na infância e conseguiu chegar à instância mais alta do Poder Judiciário trabalhista brasileiro. Mas o sucesso de Dalazen é uma exceção quando o assunto é trabalho infantil.
E apesar do testemunho ter sido gravado em 2012, traz à tona um problema que continua muito atual. “Está presente na sociedade a ideia de que o trabalho dignifica e auxilia na formação moral da criança, mas a verdade é que o trabalho precoce é deformador da infância. O lugar da criança é na escola”, ressaltou a procuradora do Trabalho Amanda Broecker ao comentar o vídeo com a fala do ministro, durante uma capacitação realizada na última quarta-feira, em Várzea Grande.
Cerca de 50 educadores participaram do evento, que marcou a conclusão da 2ª etapa do “Projeto MPT na Escola: de mãos dadas contra o trabalho infantil” no município. A procuradora utilizou o depoimento de Dalazen durante uma de suas palestras. Visivelmente emocionado, ele lembra na gravação que não teve infância nem oportunidade de experimentar atividades lúdicas comuns vivenciadas por uma criança. Esse passado, segundo o ministro, deixou marcas profundas e acabou fazendo dele “um adulto sério demais”.
O mesmo pode ser dito por Jucélia Alves Pereira Marques, professora nas escolas Gonçalo Domingo de Ramos, em Várzea Grande, e Hilda Caetano de Oliveira Leite, em Cuiabá. “Eu tinha tantos sonhos. Eu queria ter tido uma bicicleta e não tive. A única boneca que eu tive que eu me lembro foi uma de pano que a minha mãe de sangue fez. Eu fui ter uma calça jeans com 18 anos, as coisas que as adolescentes têm eu não tive”, conta.
Natural do Amazonas, se tornou vítima do trabalho infantil doméstico aos cinco anos e a situação que se prologou até completar a maioridade. Foi entregue pelos pais a um viajante que prometeu matriculá-la em uma escola. De origem humilde, única mulher de oito irmãos, Jucélia começou a trabalhar em Acorizal na casa da família do aliciante.
Algum tempo depois, foi cedida à filha do casal, uma jovem recém-casada com um homem "muito mais velho”, e com ela ficou até os 14 anos fazendo “todo o serviço da casa”. “Nesse intervalo eles tentaram arrumar um noivo para mim três vezes porque eles queriam garantir dinheiro para eles. Aí chegou num ponto insustentável que o marido dela tentou me estuprar aos 14 anos e eu fugi dessa casa”.
Jucélia foi, então, morar na casa de uma amiga de escola e conseguiu um trabalho de babá. “Eu não tinha como recorrer a ninguém, eu era menor. Eu também não tive mais contato com a minha mãe, não sei se ela me procurou. Na época que eu fui morar com a minha primeira mãe adotiva, eu fiquei sabendo que meu pai tinha morrido quatro meses depois”.
Marcas do passado
Experiências traumáticas como a de Jucélia e do ministro Dalazen deixam cicatrizes inegáveis para toda a vida. No caso da primeira, as marcas da experiência aparecem nos conselhos que hoje concede à filha. “Busque estudar para que você não precise depender de ninguém porque depender de alguém é muito difícil”. No caso do segundo, na emoção de quando revela que ser privado da infância o tornou "um homem sem graça nenhuma".
Assim como eles, milhares de crianças são vítimas do trabalho infantil no Brasil e no mundo. De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2014, mais de 3,3 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estão em situação de trabalho no país, um aumento de 4,5% em relação ao ano de 2013. Só em Mato Grosso, o número chega a 65.972.
Mas essa violência não afeta apenas o plano emocional das vítimas. Há prejuízos físicos, morais e sociais. A procuradora Amanda Broecker, titular regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) do MPT, explicou que crianças e adolescentes trabalhadores estão mais sujeitos a acidentes (inclusive fatais), a sentirem dores musculares, de cabeça e de coluna, a terem deformações ósseas, fadiga excessiva, insônia e mutilações. Segundo dados da OIT, a cada minuto uma criança sofre um acidente de trabalho no mundo.
“As longas jornadas de trabalho, as ferramentas, os utensílios e o próprio maquinário inadequado à idade resultam em vários problemas de saúde e elevação de índices de acidentes e até mesmo fatais”.
Quanto aos danos morais da exploração do trabalho infantil, ela apontou a expropriação das etapas essenciais para a formação plena do indivíduo, cujos reflexos vão desde o sentimento de abandono e indiferença até o desenvolvimento de um adulto com baixa autoestima e sem referência ou identidade. Há, ainda, os prejuízos sociais relativos ao atraso e à evasão escolar, que contribuem para uma futura inserção desqualificada no mundo do trabalho e a perpetuação do ciclo de pobreza.
A procuradora afirmou que é preciso desnaturalizar as práticas sociais aceitas historicamente pela sociedade e criticou os mitos que permeiam e consentem essa situação. “É comum ouvir que é melhor trabalhar do que ficar na rua ou que é melhor trabalhar do que roubar. Não estamos apenas substituindo uma violação por outra? Muitas vezes o próprio trabalho expõe a criança à violência, a riscos, ao uso de drogas, à exploração sexual. Além disso, não existem dados que demonstrem que o trabalho evita a criminalidade. Em pesquisa em São Paulo, 80% dos detentos do antigo presídio do Carandiru declararam que trabalharam quando eram crianças. Ou seja, nós, a sociedade, o Estado e a família, devemos lutar para garantir às crianças e aos adolescentes alternativas que preservem a infância”.
Trabalho infantil doméstico
Considerado uma das piores formas de trabalho infantil, o trabalho infantil doméstico foi o tema da palestra conduzida pelo assessor jurídico Marcos Gabriel da Silva no evento da última quarta-feira. De acordo com Silva, um estudo apresentado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) em 16 de março de 2016 apontou que 213.613 crianças e adolescentes estavam sendo exploradas no serviço doméstico no Brasil.
Dados da PNAD de 2013 e do DIEESE ajudam a traçar o perfil dessas vítimas: são, em geral, do sexo feminino (94,2%), negras (73,4%), têm entre 05 e 15 anos, vivem em condições de pobreza e extrema pobreza e são oriundas de cidades do interior ou de bairros periféricos.
Silva pontuou que crianças e adolescentes explorados no trabalho doméstico estão extremamente vulneráveis a uma série de riscos: o ambiente de trabalho propicia o abuso sexual, danos à saúde física, dependência psicológica, baixo rendimento e evasão escolar e a “desprofissionalização”.
“A atribuição de responsabilidades, observadas a idade e a capacidade física da criança ou do adolescente, é razoável quando realizada com fins educacionais. Todavia, tudo tem limite. Por exemplo, não se pode transferir a responsabilidade do cuidado da casa ou dos irmãos a uma criança ou a adolescente, prejudicando-se, assim, o seu momento de lazer e/ou de estudo”, observou.
A Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata das Piores Formas de Trabalho Infantil, entrou em vigor há mais de dez anos e foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto-Legislativo nº 178. Passou a ter vigência no ordenamento jurídico brasileiro a partir de fevereiro de 2001.
Na convenção, a expressão "Piores Formas de Trabalho Infantil" abrange aquelas atividades que, por sua natureza ou pelas condições em que são realizadas, podem prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças. A definição desses tipos de atividade ficou a critério de cada país, por meio de consulta a organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, levando em consideração as normas internacionais sobre a matéria.
Por meio do Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, foi definida, então, no Brasil, a Lista TIP. Nela, também é elencado como trabalho prejudicial à saúde e segurança da criança e do adolescente aquele executado em ruas e logradouros públicos, por expor a vítima a perigos como radiação solar, chuva e frio ou acidentes de trânsito.
Projeto
Esse é o 4º ano consecutivo que a Secretaria Municipal de Várzea Grande desenvolve o MPT na Escola. Para a coordenadora do projeto Rosana Fátima de Arruda, a parceria com o MPT tem sido um ganho para o município. “A gente sabe que sempre há casos de exploração de trabalho infantil e essa parceria vem operacionalizar trabalhos de combate a essa prática na escola. O professor, sabendo como identificar e fazer a prevenção, tem mais facilidade e mais subsídios para chegar na escola e fazer a aplicação do material do projeto, que é rico e dá ao professor possibilidades, meios de fazer essa implementação”.
A coordenadora conta que há casos em que a intervenção da escola ajudou a retirar crianças do trabalho infantil. “Citando um caso do ano passado, um menino de 12 anos ia para escola, mas ficava desesperado para poder ir embora porque queria ajudar um tio. E quando a gente especulava qual o interesse dele de trabalhar é porque ele recebia pouquíssimo dinheiro, mas recebia, e ele dizia ‘não quero estudar porque eu preciso de dinheiro’. A mãe era uma mãe solteira, cheia de filho, e não dava conta de dar o mínimo para o bem-estar dessa criança. Então ele buscava, através de outras pessoas, um trabalho para poder angariar esse recurso”.
Rosana relata que ainda que “o menino não ficava sentado, bagunçava o tempo todo, pulava o muro e acabava por desistir de estudar”. A solução, segundo a educadora, “foi conversar com a mãe, que nesse caso foi muito compreensiva, e procurar parcerias com o comércio do bairro para poder auxiliar na compra de alimentos para casa e também poder auxiliar esse menino com as coisas que ele queria, que eram coisas simples: brinquedos, bola...”.
A procuradora do Trabalho Amanda Broecker elogiou o empenho dos educadores de Várzea Grande e da Secretaria Municipal de Educação do município de Nova Lacerda, que compareceu à capacitação, e reforçou que o objetivo do projeto é de fortalecer toda a rede de proteção dos direitos da criança e do adolescente, ressaltando que "a educação tem relevante papel transformador da realidade social".