"Brigadeiro" e seus moinhos
Jornalista que mais conhece Mato Grosso, o repórter Eduardo Gomes lança o “Livro 44”, que resume mais de quatro décadas de caminhada
A quem adentrar a leitura do “Livro 44”, de Eduardo Gomes de Andrade, o Brigadeiro, fica reservada a compensação certa de que se estará em boa companhia ao palmilhar cada palmo do chão mato-grossense nesta saga que o bom mineiro de Alpercata tem percorrido nos 44 anos desde que por aqui chegou num final de manhã de 1970. Tal qual Virgílio conduzindo Dante Alighieri pelas sendas do Inferno, do Purgatório e do Paraíso em A Divina Comédia, estejam certos os leitores de que companheiro mais competente e sagaz não há, nem pode haver, para junto se empreender uma jornada de tal porte e extensão.
Isto, aliás, todos, absolutamente todos reconhecem nele: seus amigos, seus inimigos, os que apreciam sua escrita (que ele sempre reclama, mineiramente, serem muito poucos), seus detratores e até aqueles, jovens jornalistas sobretudo, que lhe fazem ouvidos moucos hão de reconhecer, e reconhecem sim, que Brigadeiro é uma verdadeira enciclopédia ambulante quando o assunto é o estado de Mato Grosso, sua história, sua geografia, sua gente com a cultura e as crenças próprias. Enciclopédia completa, saliente-se, em escrita e iconografia, com o registro letrado e o da oralidade, com tabelas de produção e mapas incrustados na cabeça e no coração, muitos mapas mostrando cada cidade, vila, distrito, corrutela. Costumo dizer que até muitas comunidades rurais Mato Grosso adentro ele conhece. Mais: até carreadores de roça, sim senhor, onde às vezes, no rancho de sapê, dividiu com os peões o rango ou a merenda sobre os calcanhares, discutindo o preço do algodão e a chegada da estação das águas. Conhece cada rio, ribeirão ou riacho e em muitos deles nadou e pescou. Conhece e fotografa cada igreja do estado, que cataloga em seu blog há anos. Conhece os armazéns e os botecos, personagens dos tempos do garimpo, religiosos, gente que fez fama na valentia e/ou nos prostíbulos, dançarinas, cantores e cantoras, jogadores de bola e outros esportistas, palhaços de circo, até com Waldick Soriano certa vez se encontrou, de manhãzinha, num boteco de beira de rodoviária em Cáceres, traçando uma média e um pão com manteiga e dando uma palhinha de “Eu não sou cachorro não” pra confortar a pequena plateia de humildes trabalhadores indo pro batente ou notívagos tardios de olhos sonolentos, retardatários da noite morta.
Todos os que gostam de ler sabem muito bem o quanto a literatura de viagens costuma trazer relatos sedutores. A partir da Bíblia com os diversos êxodos do povo escolhido, nas Mil e Uma Noites, nas viagens de Júlio Verne e Marco Polo, nos deliciosos livros Viagem à Roda do Meu Quarto, do francês Xavier de Maistre, e Um Bom Par de Sapatos e Um Caderno de Anotações, do russo Anton Tchekhov, nas aventuras de Pedro Malasartes, João Grilo e Chicó, nas andanças do Capitão Gancho e de outros personagens de contos da carochinha. Por isso, neste quesito, o livro do Brigadeiro é um prato cheinho derramando pelas bordas para a apreciação dos prezados leitores.
A rigor, penso que, tirando todas as outras vantagens e a riqueza informativa que ele contém, o “Livro 44” já valeria sim a leitura ainda que fosse apenas para seguir em companhia do narrador pelas estradas, atalhos, veredas deste Mato Grosso mundão de meu Deus, neste aspecto o mineiro seguindo as pegadas abertas pelo grande mato-grossense Cândido Mariano da Silva Rondon, merecidamente chamado de O Maior Caminhante do Planeta.
Tal qual na canção de Renato Teixeira falando daquele que andou sessenta léguas num dia para ver se breganhava tristeza por alegria, Brigadeiro dá a cara a tapa e publica na esperança óbvia de breganhar o descaso por leitores – e, não menos importante, por comentários na imprensa e na net falando, bem ou mal, do livro dele. Nisto, aliás, se aproxima de outro grande personagem da literatura, o Dom Quixote de La Mancha de Cervantes, em sua insana batalha contra os moinhos de vento – no caso presente, contra o “silêncio sepulcral” a que um dia se referiu Wander Antunes para protestar contra o absoluto desdém que paira, sobranceiro, sobre todas as coisas que se fazem na arte e na cultura nesta Terra de Rondon.