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Pai quando dá
Por Camila Fernandes
27/02/2014 - 23:04

Foto: ILUSTRATIVA

“Mãe, meu pai vem quando?”

“Queria ficar com meu pai”

O que trago aqui é algo bem comum de se encontrar, embora seja difícil de explicar. Coisa estranha, em geral as pessoas convivem bem com este tipo de pai, ainda que saibam que o que eles fazem, ou melhor, o que não fazem, rebatem nas vidas de todos os que estão a sua volta.

Eu vou falar daquele homem que é pai quando dá.

É mais ou menos assim que a coisa se desenrola: houve uma separação, que entre trancos e barrancos se realizou. A criança fica sob a guarda da mãe, pois isto é o esperado por todos e o naturalmente aceito pela sociedade. O pai se encarrega de contribuir com a chamada pensão alimentícia, isto pode ser feito através de uma imposição de justiça ou ele pode ser um “cara legal” e “ajudar” voluntariamente. Além de contribuir com parte das despesas da criança, ele geralmente passa os finais de semana com o filho ou filha quinzenalmente. Parece que comparecer quinzenalmente é o tempo suficiente pra ser pai. Nem todos os pais quando dá são iguais, existem aqueles que aparecem durante a semana, vez em quando pegam o filho na escola, dão um sorvete.

chegada do pai quando dá

Os julgamentos e expectativas do mundo afora são relativamente razoáveis para o pai quando dá. O pai quando dá na maioria das vezes é considerado como um bom pai, afinal, ele comparece sempre que pode. O pai quando dá também pode ser considerado como vítima, porque, coitado, ele tem que trabalhar tanto para pagar a pensão do filho, teve até que aprender a cozinhar. E para poucas pessoas, o pai quando dá é realmente um descarado, mas isto é no fundo no fundo coisa de feminista chata que reclama de tudo.

A mulher, a mãe, aquela tão conhecida, fica responsável pela criação da criança no cotidiano (cotidiano aqui resume todas as adversidades e demandas diárias geradas pela vida de uma criança). Porque, sabe? Não é sempre que o pai quando dá pode assumir este cotidiano. Porque este tipo de pai quase nunca pode ficar com seu filho. Ele tem muitos motivos para não poder: ele está reestruturando a sua vida; ele está desempregado; ele trabalha quarenta horas; ele não tem mãe nem empregada pra ajudar; a casa dele é pequena; ele não tem carro; ele é um pobre coitado; coitado dele. Vamos ser compreensivos! O pai quando dá realmente nunca pode ficar, porque ele trabalha muito, é operário, artista, engenheiro, empresário. E quando ele está desempregado, ele também não pode ficar porque está deprimido e sem dinheiro.

“Mas a mulher trabalha também!”, alguns vão lembrar. Mas isto não importa. É que a mulher já está mais acostumada, sabe? Ela trabalha, cuida de criança, se preocupa, leva o lanche que a criança esqueceu em casa, auxilia no dever de casa, leva ao pediatra, arruma um cursinho naquele tempo livre que a escola não cobre, paga alguém pra ficar com o filho, adia a compra de algo para dar uma vida melhor pra criança. Enfim, ela se vira nos trinta e como se pode. Parece que mulher tem o dom natural da “viração”.

Quando a mãe tem “a sorte de casar” ou “arrumar um namorado”, porque cá entre nós, não tem coisa pior na vida do que ser “mãe solteira”. Um “título” que realmente não cai bem em ninguém e que só existe para o gênero feminino, porque até hoje eu nunca conheci um “pai solteiro”. E se conhecesse acho que isto pegaria bem pra ele, porque seria fofo e bonitinho. Pois bem, quando a mãe trata de “ajeitar” sua vida, o pai quando dá, dá logo um jeito de se fazer presente. Ele aparece para lembrar que a criança tem um pai! E que ele precisa garantir que ninguém está ali para ocupar o lugar legítimo dele. Entretanto, se a mulher tem outro filho nesta nova relação, o pai quando dá pode mudar de atitude e pode vir até a cortar a relação com o primeiro filho. Deve ser porque, se a mulher teve um filho com outro, isto quer dizer agora que ele não tem as mesmas obrigações. Porque se ela foi ter filho com outro, então ele não tem mais nada a ver com isto. Algo se rompeu na pureza da mulher, pureza esta que praticamente de nada lhe adiantava. Mas quando o pai quando dá tem outro filho com outra mulher, ele pode muitas vezes se mostrar um pai presente para o seu segundo filho. Não que isto mude qualquer coisa para a coitada da primeira criança, que teve a infelicidade de ser filho daquela mãe.

Os filhos.

Os filhos criam uma “Super Adoração” pelo pai quando dá e muitas vezes entram em conflito com a mãe, aquela que se encarrega do cuidado deles dia após dia. Convenhamos, tem coisa mais chata que ter mãe todos os dias? Aquela doida que está sempre ali preocupada, com ares de desorganização e que ás vezes transmite a nítida impressão que alguma coisa tem de errado com ela. Legal mesmo é o pai quando dá! Que encaixa a criança onde pode. Quem não exerce mais fascínio do que aquele homem herói que surge como um relâmpago e só aparece de vez em quando? Que como num lampejo de cometa se materializa, do nada, cheio de fantasias, e quando vai embora deixa apenas o arfar daquele suspiro infantil, tal qual uma abóbora que se desvanece após a badalada da meia noite. Um verdadeiro conto de fadas, um conto para crianças, de autoria do pai quando dá.

Ele não se julga, nem se acha ruim, pois sempre olha para o lado e diz: “mas o Renato é pior do que eu”, “o João nunca vê a filha”, “o Marcelo nunca deu um centavo”, “o Luis, ah! Aquele ali comeu e foi embora”. “Eu pelo menos apareço quando dá e pago o que posso.” Isto lhe faz dormir em paz.

E quando ele aparece, ele quer saber como tudo ocorreu naquela semana, ou como foi durante todo o mês em que ele esteve ausente. Ausente não! O pai quando dá não é ausente, ele é ocupado. E se algo está “dando errado” na vida da criança ele questiona, “Mas você é a mãe dela?”, “Ele tem que te respeitar!”, “A adulta é você!”, “Criança não tem vontade”. O pai quando dá entende muito de educar. O modelo de educação a distância deve ter se inspirado na pessoa do pai quando dá.

Quando ele pega o filho ou filha, naqueles momentos que são raros e que a mãe enfim poderia ficar tranquila, ele ainda dá um jeito de mostrar que as coisas não são tão fáceis assim. Ou ele dificulta a comunicação, ou nunca chega no horário combinado, ele se atrasa para chegar, ele não consegue cumprir os acordos, mas o que é isso de acordo afinal? Ele devolve o filho na hora que dá, na hora que está melhor pra ele. E quando a criança fica doente quando está com ele, à culpa é da mãe que mandou a criança doente, ele não pode ir à farmácia nem ao hospital, pois isto é coisa de mãe. Mae desnaturada.

"Time for school", foto de Casual Capture, no Flickr. Alguns direitos reservados

“Time for school”, foto de Casual Capture, no Flickr. Alguns direitos reservados

Se a criança não come, foi à mãe, que afinal é quem fica com ela todos os dias que não a educou direito. Se a criança vai mal na escola é porque a mãe não está acompanhado nas tarefas escolares. Se a criança não passeia no final de semana é porque, como se não bastasse toda esta negligência, ainda por cima a mãe quer ter um pouco de vida própria e sair à noite com seu namorado, ou marido, ou amigos e amigas. Mas veja só, que folga! Não entendeu ainda que ser mãe é viver em função do filho e se alienar para o mundo?

A família e os amigos do pai quando dá geralmente exercem certa condescendência com este tipo social. Ninguém nunca o confronta. Ninguém nunca o questiona porque ele é pai somente quando dá. A sociedade tolera estes homens, porque se a mulher já sabia que ele era assim porque diabos foi engravidar dele, né? A culpa, é claro, foi desta desprecavida. Pensasse duas vezes na hora de escolher o pai desta criança.

É que também o pai quando dá não é uma pessoa ruim, não. Ele é um excelente companheiro de trabalho, prestativo, atento. Ele é um amigo de todas as horas. Gente “boaça”. Ele se preocupa com a política, ele ás vezes é até de esquerda, militante de um mundo melhor. Ele vive postando fotos com o filho nas redes sociais. Ele pode não comparecer toda hora, mas que ele ama, isto sim, ah, ele ama esta criança.

Ele inclusive pode estar bem próximo de você, ser até o seu marido, namorado, companheiro, que quando dá resolve lhe “ajudar”, lavando umas vasilhas, olhando as crianças enquanto você toma aquele banho tão esperado o dia inteiro.

Ele infelizmente não percebe nem enxerga que o preço de sua liberdade e de sua mobilidade se faz à custa da territorialização da mulher e do tempo feminino. E que todas às vezes que ele sai pela rua sozinho, caminhando com as suas próprias pernas, é porque tem uma mulher que está fazendo o trabalho de cuidado de seu filho. Sim, porque um dos poderes que o pai quando dá tem é de transformar a atividade de cuidado em um contínuo repleto de sacrifícios. Ele acha que ser pai no cotidiano é coisa de “país de primeiro mundo”. Porque no Brasil não tem isto não, o normal aqui é ser pai quando dá.

Triste e pálido é quando precisamos usar da ironia para provocar o reconhecimento de uma situação lancinante que ocorre não só as mães, mas a todas as mulheres e outros que cuidam daqueles que são filhos de pais quando dá. Em tempos que se discutem a plausibilidade do “abandono afetivo” e da “alienação parental”, é inegável que estas categorias jurídicas, psicológicas e sociais falam em alguma medida desta figura da ausência, do afastamento que insiste em se fazer presente. Porque existe um lugar que não foi apropriado bem como expectativas não correspondidas. Isto não quer dizer que as pessoas não recriem suas vidas, que não existam outros ricos laços para além do pai, que as trajetórias sejam dependentes da figura paterna num delírio compulsório da família nuclear, e que todos estejam fadados ao atavismo biológico incontornável e insubstituível. Não. Isto simplesmente só quer dizer que existem contextos com crianças que, sim, adorariam ter um pai que participa e intervém um pouco mais do que quando dá. E que existem mulheres que poderiam viver suas vidas de forma mais equilibrada, sem tanto sofrimento, se não fosse pelo tamanho do peso que a displicência e conveniência de uns em relação a outrem pode provocar.

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