Jorge Pedroso de Almeida, 59 anos, conhecido como Poconé, passa quase metade do mês fora de casa. Ele enfrenta mosquitos, cobras, um sol escaldante, o iminente ataque de onças e o desconforto de viver em uma barraca de nylon para poder exercer uma das profissões mais ameaçadas do planeta, seja pelas mudanças climáticas ou pela poluição dos rios: sobreviver da pesca em cursos fluviais.
Como grande parte dos outros mil pescadores da região de Cáceres, no Mato Grosso, Poconé passa semanas em um barranco às margens do Paraguai, distante até 200 quilômetros da cidade mais próxima. Eles representam uma classe local que sobrevive entre as brechas de dois mundos.
Não são considerados povos tradicionais, porque muitos vivem também nas cidades e não completamente isolados nas comunidades ribeirinhas.
Porém também estão proibidos de usarem de técnicas de manejo de pesca mais produtivas e que aumentariam a rentabilidade da atividade. Por lei, os pescadores profissionais de Cáceres só podem trabalhar de forma tradicional, ou seja: apenas com o anzol e sem redes.
Muitos dos pescadores que acampam com Poconé são descendentes dos índios Guatós, povo indígena conhecido como canoeiros, dizimados do Pantanal pela chegada dos colonizadores europeus.
Outros, como Jorge que carrega o nome de sua cidade Poconé como apelido, vieram de outras regiões pantaneiras.
“Quem comeu cabeça de pacu não deixa o rio”, diz Almeida entre risadas. “Eu cresci no Pantanal de Poconé, sempre com essa relação com o rio. Quando fiquei moço, vim pra cá para servir o exército, depois fui conhecendo a abundância do rio Paraguai e nunca mais deixei esse lugar”, afirma.
Poconé conta já perceber os impactos das novas atividades humanas no Pantanal.
“Tudo mudou. Os bichos, a abundância até as águas. Estamos aqui em cima de um outro mundo, diferente de tudo que estávamos acostumados. Agora o pescador vai ter que saber se adaptar” diz.
A lufada, saída dos peixes da grandes baías do Pantanal, é um dos eventos que Poconé afirmar estar diferente.
“O normal é vermos aquela barulheira toda seguida de uma onda de peixe. É tanta bicharada que muda até a cor das águas. Quem nunca viu, não acredita ser possível ver uma onda de peixes daquela batendo nas praias, com um monte de jacaré e outros animais correndo atrás”, afirma Poconé. “Mas, esse ano está tão diferente, que nem lufada teve. Os peixes parecem que estão vindo pelo fundo do rio, não sei. Choveu muito no Pantanal. Está tudo diferente. Tudo mudado”.
Conviver com as onças é outra das mudanças que os pescadores precisam enfrentar. Em dez anos, os registros de grandes felinos aumentaram muito no Pantanal de Cáceres.
Para os pescadores que passam semanas isolados nos barrancos de rio, o risco de estar ao lado de um predador de topo de cadeia é alto. “Eu acampava sozinho com a esposa. Mas, teve uma onça que cismou com a mulher. Ela não dava bola para mim, não me olhava. Agora quando a minha mulher aparecia, a onça até sentava para olhar. Acho que cismou que queria comer a mulher, não tinha jeito. A solução foi pararmos de acampar sozinhos e nos juntarmos ao grupo do Jatobazinho, onde tem mais 15 pescadores rio abaixo.”, diz.
Mas as onças também rondam o grupo desse acampamento. Agora, os pescadores querem construir uma espécie de cercado gigante de tela em torno da área onde dormem. A ideia é evitar a chegada inesperada das onças.
“De dia elas passam o tempo todo circulando a área, mas estamos acordados e podemos nos defender. A noite é um problema”, afirma Poconé.
Outro obstáculo é o gelo para manter o pescado fresco. A maioria dos pescadores dos acampamentos do rio Paraguai ainda possuem canoas rudimentares, as chamadas rabetas.
O custo com gasolina para comprar o gelo na cidade inviabiliza que eles possam subir o rio com frequência. Muitos acabam até perdendo os peixes que conseguem pescar.
A solução veio de um apoio solidário proposto por Douglas Trent, pesquisador-chefe do Projeto Bichos do Pantanal, realizado pelo Instituto Sustentar.
O capitão do barco do projeto, Vagno Pereira Pires, é o responsável por fazer o transporte do gelo para os pescadores dos acampamentos próximos à Cáceres.
“Ao todo levamos umas 60 barras de 12 quilos. Todo mês descemos até onde eles acampam para ajudá-los”, afirma Pires.
Para Douglas Trent, essa ajuda aos pescadores é uma forma de garantir que um precioso conhecimento sobre os ecossistemas da região sejam preservados.
“Eles guardam uma sabedoria desse biomas que poucos possuem. Sabem, inclusive, muito sobre as espécies de plantas necessárias para que certos peixes sobrevivam”, afirma Trent. “Não há chances de preservar o Pantanal, sem salvar os pantaneiros também. Tudo está conectado”.